O Duelo

Ele se virou e, num repente, a espada o atravessou. Olhando para ela com uma inesperada serenidade, segurou o punho negro e começou a girá-la lentamente. O atacante não acreditava, a incredulidade impressa em seu rosto. Como podia a vítima estar brincando com sua arma, viva e calma? Não era possível, calculara muito bem o golpe e sabia que magos normalmente não eram muito resistentes. Preparados poderiam ser indestrutíveis. Pegos de surpresa, entretanto, não ofereciam muito risco.

– Sua espada não tem muita elegância, jovem – disse o homem, que aparentava passar dos setenta. O toque na espada ficou diferente, agora não era mais de curiosidade. Com uma rapidez também inesperada para a idade, o velho retirou a espada de seu peito e a fez desaparecer. O atacante passou por um rápido momento de inação, mas voltou à prontidão típica de sujeitos como ele. De suas botas, sacou duas adagas reluzentes, com dois dragões cravejados nas lâminas. Apontou-as para o velho.

– Vamos ver o que me diz dessas duas, então!

Levantou as adagas para cima e, no movimento de volta, saíram de suas mãos com velocidade impressionante. Ao chegarem a meio metro do mago, porém, bateram contra alguma coisa invisível e caíram no chão. A reação do atacante não poderia ter sido mais efusiva. O mago compreendeu que agira conforme ele previra. “Ladrão atrevido, tem recursos”, pensou.

As adagas, ao encontrarem o chão, viraram-se violentamente e fincaram-se na terra. A marca dos dragões queimou em brasa e, do chão, começou a emergir uma enorme criatura, o que forçou o velho e dar vários passos para trás. O dragão saiu da terra com uma fúria avassaladora e mirou o mago, que por sua vez ouvia os gritos de incentivo do ladino atacante. Agora era necessário agir de verdade.

Ele conjurou um cajado enorme do nada e levantou-o em direção ao dragão. A fera avançou escancarando a bocarra e, por dois pequenos orifícios de dentro dela, saíram chamas, tão quentes quanto o magma, ao mesmo tempo em que um rugido ensurdecedor rompia o ar. O mago, com uma voz límpida em meio ao rugido, proferiu meia dúzia de palavras ininteligíveis. Então o cajado brilhou e as chamas do dragão, ao invés de cumprirem seu destino, pairaram no ar, aparentemente confusas. No segundo seguinte, elas tomaram forma novamente e partiram sem piedade em direção ao novo alvo. Não houve saída; as chamas atingiram o jovem certeiramente, e o envolveram numa coluna de fogo, que subiu ao céu finalmente.

O dragão não parara para assistir à viagem de suas labaredas, continuou avançando em direção ao velho. Chocou-se contra uma parede invisível que foi estilhaçada (o velho soltou um gemido de contrariedade) e seguiu furiosamente. Foi então que o ancião jogou seu cajado ao chão, e, com mais meia dúzia de palavras, transformou o pedaço de pau numa serpente que não parava de crescer. A serpente contra-atacou o dragão com voracidade equivalente, e os dois ficaram a se digladiar. Enquanto isso, o velho olhou para onde uma vez estivera o ladino e se assustou: não havia mais ninguém lá, sequer um corpo. Foi com raiva que ele teve de gritar em clara voz uma palavra para que, de suas mãos, irradiasse uma luz que ia mostrando tudo ao redor e cancelando quaisquer eventuais efeitos mágicos. Foi então que ele viu.

O ladrão estava bem queimado, mas nada que aparentasse fazê-lo desistir de seu intento. Seu braço esquerdo revelava uma enorme mancha sangrenta, assim com suas pernas. Os cabelos, outrora meio desgrenhados, agora apresentavam vários tufos chamuscados. O olhar que direcionou ao conjurador foi de um venenoso rancor. Enfim retirou um amuleto que estava escondido por entre suas roupas queimadas e o mostrou triunfalmente ao seu inimigo. “Um amuleto de proteção, foi isso que o salvou”. Retirou também sua capa da invisibilidade, agora inútil com a magia lançada, e começou a correr em direção ao mago, numa atitude tresloucada e inesperada. Chegando a seu lado, virou um gancho muito bem aplicado exatamente no queixo do velho, que cambaleou muitos passos e caiu para trás, aturdido com a velocidade e a inconsequência do seu oponente.

– Chega de gracinhas, velho idiota! Quero ver você me enfrentar de homem pra homem!

Fosse o ladrão guerreiro ou bárbaro mais musculoso e treinado n’arte de guerrear, o mago estaria provavelmente desacordado. Teve sorte, porém, levantando somente com a boca ensanguentada e três dentes a menos. Levou alguns segundos para perceber que o ladrão já estava novamente ao seu encalço, pronto para desferir mais um golpe primitivo e ingênuo. Ele rodopiou e protegeu-se com sua capa, cobrindo inclusive sua cabeça. A mão do ladino, que vinha novamente para outro bem aplicado gancho, chocou-se contra a capa e ele sentiu uma dor lancinante. Sua mão ficou coberta com uma substância negra que a corroeu sem piedade. Desesperadamente, mas com uma astúcia inigualável para quem estava debilitado daquele jeito, o ladrão retirou de seu cinto um frasco e derramou o líquido de dentro dele em seu pulso sem mão. O ácido, que começava a corroer parte do braço, perdeu o efeito imediatamente, e o sangramento estancou. A dor também foi controlada. O velho não viu porque estava tirando a capa de cima de si, mas o ladrão, nem bem recuperado do avario, retirou outro item de seu cinto, um pergaminho. Leu-o muito rapidamente e, no momento em que o pedaço de papel se desfazia, três humanoides horríveis apareceram ao seu lado. A pele das criaturas era azulada, e o cabelo comprido que saía de suas cabeças era mal cuidado, com aspecto apodrecido. O ladrão gritou:

– Vão, bruxas, destruam esse velho maldito e livrem-se da dívida que têm para comigo!

As bruxas começaram a cercar o mago, rindo diabólica e histericamente. “Hoje é o nosso dia, irmãs, teremos comida à vontade”, urrou aquela que aparentava ser a líder das três.

O mago sabia que agora estava numa situação complicada. Embora tivesse se preparado para ataques surpresa de eventuais saqueadores, como o ladrão cretino, não possuía magias suficientes memorizadas para enfrentar três seres abissais como as bruxas. Além disso, o golpe que levara o deixou bem machucado. Suas opções estavam diminuindo e o ladino mostrou ser um inimigo bem mais preparado que a média. Com a pressa que a situação exigia, pegou impulso no chão e pulou. Entretanto, o pulo não o elevou alguns centímetros do chão, como esperado; mais, o mago levantou voo, pairando vários metros acima de seus oponentes. De lá de cima, ele proferiu Ivenda Tonitruu! O céu começou a escurecer de forma rápida e assustadora, inúmeras nuvens carregadas se aproximando. Lá embaixo, as bruxas se movimentavam em círculos antes de gritarem feito loucas e também alçarem voo em vassouras rotas. Elas vinham em direção ao mago velozmente, mas, antes que a primeira pusesse suas garras purulentas ao redor do pescoço do mago, ele apontou o dedo indicador para ela. Das nuvens irrompeu um raio tonitruante, que atingiu a bruxa, arrebentando-a. As outras duas, assustadas com a luz, desviaram do mago, sem deixar de circundá-lo, no entanto. O ladrão, mero espectador da batalha aérea que ocorria, esquivou-se dos pedaços carbonizados da bruxa atingida pelo raio que caíam lá de cima.

A bruxa líder voava transtornada ao redor do mago, vociferando palavras de vingança. Sacou um chicote de suas costas. Três vezes o chicote girou no ar, e três vezes ribombou contra o mago, que tentou fugir como pôde. A corda e seus ganchos o cortaram nos braços e nas costas, seguidos de um urro de dor. A outra bruxa, aproveitando a distração do velho, voou em sua direção e o agarrou por trás, cravando suas unhas sujas no peito e no braço machucado.

As bruxas não perceberam, em seu afã por trucidar o homem, que foram diminuindo a altitude. Ficaram numa altura muito oportuna para que a esquecida serpente, que outrora lutava contra o dragão, pudesse abocanhá-las. E foi o que aconteceu. O bote foi certeiro e único, engolindo a bruxa líder, que lançou um último olhar aturdido a sua irmã. Esta, por sua vez, mal pôde controlar a dor de ser corroída pela mesma substância que consumira a mão de seu mestre, espalhada em todo seu corpo graças ao expansivo abraço dado no oponente. De lá de cima, de sua reiterada superioridade, o mago mirou com desprezo seu inimigo pela última vez, apontando para ele o indicador. O ladino sorriu e deu-se por vencido, cumprimentando o ancião com um leve aceno da cabeça, antes de ser fulminado por outro raio das cumulus nimbus formadas pela magia. O duelo acabara.

Por Edsel Teles

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1 Comment
  1. Gostei do conto. Cheio de reviravoltas, e muito uso de poderes. Bela descrição de batalha.

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