Quando fiquei sabendo que o Marcelo Telles havia criado uma coluna na REDE chamada “Ideias de Campanhas”, fiquei bastante empolgado. Eu, como todo GM com uma vida adulta razoavelmente ocupada, tenho muito pouco tempo para dedicar à preparação de campanhas de RPG. Porém, minha imaginação continua tão fértil como quando eu mestrava ou jogava todo final de semana (há uns 10 ou 15 anos atrás). Talvez ainda mais fértil, pois hoje em dia me parece que a mídia anda muito mais inspiradora e acessível: três ou quatro filmes de heróis de quadrinhos todo ano, seriados como Lost, Spartacus e Game of Thrones na TV, diversos lançamentos de qualidade na literatura de ficção científica e fantasia e uma miríade de suplementos de RPG cobrindo todas as temáticas possíveis (e mais algumas!). Pois bem, toda essa abundância de inspiração mais a fertilidade imaginativa inerente a um jogador de RPG contrastadas com a falta de tempo para jogar resultam em um monte de ideias de campanhas que, provavelmente, nunca sairão do campo da possibilidade. Finalmente tenho a chance de partilhar algumas dessas ideias com alguém que, espero, faça bom uso delas.
Uma das ideias de campanha que mais me interessou recentemente foi uma adaptação para GURPS do excelente seriado Battlestar Galactica. Para quem não viu nenhuma das versões da série (a original é de 1978, depois teve uma rápido retorno em 1980 e uma versão “reimaginada” entre 2003 e 2009), a premissa básica é envolvente: depois de décadas de paz, a avançada civilização humana das Doze Colônias sofre um pesado ataque de seus arquinimigos, a raça robótica dos Cylons. Após um ataque que decima quase toda a raça humana, os 50.000 sobreviventes são guiados em fuga pela Battlestar Galactica, a poderosa espaçonave de combate que dá nome ao seriado. Perseguidos pelos Cylons, os bravos remanescentes humanos também devem lidar com seus próprios conflitos internos. A série, particularmente em sua última versão, tratou de questões profundas sobre o real significado da humanidade – altruísmo versus egoísmo, individualismo versus coletivo, honra versus sobrevivência, fé versus razão e destino versus acaso são apenas algumas das dicotomias abordadas ao longo do seriado. Tudo isso em um clima pesado e sombrio próprio da situação desesperadora em que se encontravam os últimos humanos, um clima que muitas vezes referenciava magistralmente a própria sociedade contemporânea em que atentados terroristas, inimigos internos, tortura, fundamentalismo religioso, atentados às liberdades civis e crises políticas eram temas constantes no noticiário. Além de uma produção de qualidade superior em termos de cenário, efeitos visuais e roteiro, o seriado também contou com atores magníficos, entre eles os soberbos Edward James Olmos e Mary MacDonnell.
Eu sempre achei que o cenário de Battlestar Galactica era perfeito para uma campanha de RPG. O fato da Margaret Weis Productions ter lançado um belíssimo core book capa dura adaptando o seriado para o sistema D20 me dá alguma razão. Além dos complexos temas discutidos no seriado, o conflito épico com os Cylons e a própria pressão pela sobrevivência não apenas individual, mas de toda a raça humana se constituem em material para variadas aventuras e abordagens de jogo. As possibilidades de personagem podem parecer inicialmente limitadas a PCs com um pano de fundo militar, dada a proeminência da Battlestar Galactica na frota humana em fuga, mas pensando bem praticamente qualquer tipo de personagem pode ser incorporado: os sobreviventes podem vir de todas as Doze Colônias e de todas as classes sociais. E as possibilidades de aventura são inúmeras: além de empolgantes combates espaciais, os episódios do seriado mostraram drama, intriga (muita!), tiroteios e ações táticas, investigações criminais, romances, explorações planetárias e até julgamentos. Finalmente, acho que a própria estrutura do seriado (episódios e temporadas) é bastante apropriada para uma campanha de RPG. Além disso, o ataque Cylon me parece ser uma maneira bem impactante de iniciar a campanha: bem no meio da ação, com o mundo literalmente acabando e os personagens correndo por suas vidas!
A escolha do sistema se deu porque, particularmente, sou fã de longa data da flexibilidade e universalidade de GURPS. A quarta edição do sistema, que já conta com um dos livros básicos adaptados para o português pela Devir, é extremamente elegante e prima pela sua consistência interna. Além disso, o suporte de suplementos é fenomenal; eu discuto alguns dos suplementos que podem ajudar a conduzir uma campanha de GURPS Battlestar Galactica no fim deste artigo. De toda forma, algumas das sugestões e ideias que vou discutir podem ser adaptadas para qualquer sistema que suporte aventuras espaciais.
Personagens e Aventuras
Nunca cheguei a esboçar possíveis personagens para a campanha de GURPS Battlestar Galactica. Eu costumo ter uma abordagem bem aberta de criação de personagens: o que os jogadores têm vontade de interpretar eu tento acomodar no conceito da campanha. Considerando que o conceito da campanha é, basicamente, sobreviver em uma frota espacial em fuga de um inimigo poderoso enquanto se lida com os problemas internos de um grupo heterogêneo de humanos, as possibilidades de personagem são quase ilimitadas. Em uma campanha baseada no cenário clássico da série, iniciando no ataque Cylon, o principal elemento na criação dos personagens seria: o que você fazia antes do ataque e como teria escapado com vida?
A resposta mais simples para essa pergunta dá a todos os PCs o mesmo background e os coloca já a bordo da Galactica no início da campanha. Em uma campanha deste tipo, os PCs poderiam ser pilotos de Viper e Raptor, pessoal de manutenção e suporte ou marines. A principal vantagem de uma campanha estruturada desta forma é a justificativa direta do porquê os personagens estão juntos, a facilidade para obtenção de equipamentos, e uma cadeia de comando relativamente simples e clara que pode ser usada pelo Mestre indicar o rumo das aventuras. Uma campanha deste tipo seria, em geral, rigidamente estruturada, na qual cada episódio poderia iniciar com o briefing da missão a ser resolvida pelo grupo, ao final da qual os resultados seriam reportados diretamente aos oficiais superiores. Obviamente, se seguida a risca esta rigidez pode levar a uma sensação de repetitividade e estagnação. Além disso, este tipo de campanha enrijece também as possibilidades de personagens: um grupo misturando um marine, um piloto de Viper e um oficial da ponte de controle teria dificuldades para conduzir missões de qualquer tipo! Por outro lado, se os PCs forem todos similares, o espectro de aventuras possíveis diminui sensivelmente. O primeiro combate de caças no espaço pode ser bastante divertido, mas depois do quarto ou quinto a sensação de deja vu tende a tomar conta.
Mesmo PCs de origens não-militares poderiam se encontrar na Galactica no momento do ataque. Basta lembrar que a espaçonave era palco de uma cerimônia de descomissionamento, e que todo tipo de visitante poderia estar a bordo: jornalistas, turistas, oficiais, funcionários do governo, familiares, etc. Porém, a maneira mais simples de construir um grupo de PCs de origens diversas é explorar as outras 74 espaçonaves que compõem a frota humana. Praticamente qualquer tipo de personagem pode ter encontrado a salvação com um pouco de sorte, habilidade, ou contatos adequados. Neste contexto, quanto mais hábil for o personagem, maior será seu valor na Frota. Em 50.000 pessoas, certamente serão poucos os capacitados para cargos e funções que exigem conhecimentos aplicados. Um simples cirurgião de uma pequena cidade em Aerilon, por exemplo, pode acabar sendo Ministro da Saúde do governo da frota.
Essa característica do cenário pode se desdobrar em um tipo de campanha em que os PCs acabarão por influenciar diretamente toda a frota através de suas ações. A campanha pode se focar, inicialmente, na escalada ao poder dos personagens, reconhecidos por suas capacidades de decisão e resolução de todo tipo de problemas de ordem prática na frota. Enquanto a campanha progride, os PCs podem se aliar a uma ou mais facções dentro da frota, ou mesmo criar a sua própria na luta pelo poder. Alternativamente, os PCs podem acabar sendo *obrigados* a assumir tais responsabilidades simplesmente por serem os únicos capacitados! Nesta alternativa, os conflitos internos dos PCs, sobre cujos ombros pesa o destino de milhares de seres humanos – os últimos milhares, por sinal – podem ser um elemento atrativo para jogadores mais interessados nos desafios da interpretação do que em combates, intrigas ou interações sociais. Uma campanha deste tipo pode unir, por exemplo, um experiente médico descrente na salvação da humanidade, uma jornalista vingativa, um jovem administrador impulsivo e sedento pelo poder, um advogado cínico e manipulador, um líder religioso carismático com visões proféticas e um mercador com um passado nebuloso de ligações com o submundo. Neste exemplo, o grupo poderia ser empregado como Conselho privado da Presidente Roslin ou do Comandante Adama, ou poderia se articular em uma espécie de partido independente buscando seu espaço no complexo jogo político da Frota. O lado negativo deste tipo de campanha high profile é que limita de alguma forma as aventuras de ação. Afinal, é totalmente contra os interesses da Frota que o único engenheiro capaz de projetar uma nova linha de produção de Tylium na nave-refinaria entre no cockpit de um Viper para combater caças Cylon. E, mesmo que entrasse, ele provavelmente não saberia nem mesmo como decolar!
A alternativa é um grupo diversificado de PCs com ambições menos grandiosas e habilidades úteis em aventuras e cenas de ação. Personagens apropriados poderiam ser o criminoso especializado em infiltração, o ex-marine ou ex-soldado das Forças Especiais Coloniais em busca de um propósito, a bela mecânica capaz de operar ou consertar qualquer coisa, o detetive introspectivo, o paramédico endurecido pelo trabalho voluntário nas favelas de Mangala, o ator quase desconhecido habilíssimo em manipulação social e a sortuda pilota de espaçonave cargueira de pequeno porte (inclui a nave!). Em um grupo deste tipo, o primeiro problema é arranjar uma explicação convincente para a cooperação entre pessoas tão distintas, visto que a tomada de decisão de alto nível pelo bem da frota (ou tomada do poder, como queiram) está fora de questão. Uma sugestão que me ocorreu seria ligar o grupo a um dos personagens do seriado com relativa influência sobre a frota, que atuariam como Patrono dos PCs. Neste sentido, os persongens poderiam compor uma unidade de ação tática sob ordens diretas do Comandante Adama ou de seu XO, Coronel Saul Tigh, ou então um grupo super-capacitado de simpatizantes da Presidente Roslin. Outros candidatos a Patrono poderiam ser Gaius Baltar (em suas várias facetas, embora no início da história ele não tenha tanta influência) ou mesmo o agitador político (ou terrorista criminoso, dependendo do ponto de vista) Tom Zarek.
Os Personagens do Seriado
A propósito, um elemento a ser pensado antes de iniciar uma campanha baseada no cenário de Battlestar Galactica é a influência dos personagens canônicos do seriado, bem como a aderência da história da campanha à história da série. Em minha opinião isso depende, em grande parte, do grau de conhecimento que os jogadores têm sobre a série e das expectativas dos jogadores sobre seu grau de influência na história. Se a maioria dos jogadores é fã da série, talvez seja interessante manter os personagens principais em suas funções características, de modo a dar aos jogadores a chance de interagir com eles como se estivessem “dentro” do seriado. Da mesma forma, talvez seja prudente manter uma certa aderência ao roteiro original, pelo menos durante as primeiras temporadas (alguns fãs não vêem com bons olhos a direção que a série tomou a partir do final da terceira temporada). Mais uma vez, essa abordagem daria aos fãs a chance de se sentir dentro do seriado, porém podendo influenciar a história em determinados pontos chave. O lado negativo é que a campanha pode seguir rumos muito previsíveis. Assim, o Mestre inserir aqui e ali modificações sutis no enredo, de modo a deixar os jogadores sempre em alerta e ensina-los a não confiar demais no conhecimento prévio e, ao mesmo tempo, mantendo o feeling geral do seriado. Tudo depende, claro, do gosto de Mestre e jogadores.
Caso os jogadores em sua maioria não tenham assistido a série, a liberdade do Mestre com os personagens principais pode ser maior. Porém, eu pessoalmente vejo com bons olhos a manutenção das principais figuras da Frota. Personagens como o Comandante Adama, a Presidente Roslin, Starbuck e Lee Adama são bastante profundos e complexos, e um Mestre interessado pode se aproveitar bastante do carisma desses personagens mesmo levando a história para outros rumos.
Neste sentido, vou compartilhar com vocês algumas fichas (download no final do artigo) que fiz para os principais personagens da série. O sistema usado foi o GURPS, na sua Quarta Edição. As fichas estão em inglês e, via de regra, foram uma das minhas primeiras tentativas de criar NPCs usando as regras da Quarta Edição (por isso, podem haver pequenas inconsistências e erros). Importante: as fichas representam os NPCs mais ou menos durante a Quarta Temporada da série, por isso podem conter spoilers para quem ainda não assistiu!
- Almirante William “Husker” Adama
- President Laura Roslin
- Major Lee “Apollo” Adama
- Kara “Starbuck” Thrace
- Colonel Saul Tigh
- Chief Petty Officer Galen Tyrol
- Thomas Zarek
- Romo Lampkin
A Battlestar Galactica
No seriado, a Battlestar Galactica é um personagem próprio. Acho que pelo menos 50% de todas as cenas se passam dentro da espaçonave. Com mais de 50 anos de idade, a velha senhora é, sobretudo, imponente e carismática. Seu aspecto exterior, com a grande “cabeça de crocodilo” e os dois pods laterais nos quais estão abrigados os hangares, é inconfundível. Por dentro, ela é ainda mais rica e detalhada. Entre as áreas da espaçonave que mais chamam a atenção no seriado estão seus corredores angulados e estreitos, os bagunçados alojamentos dos pilotos, o bar do Joe, a ponte comando (ou CIC – Centro de Informações e Comando) e o hangar, mas de fato a área interna da Galactica é absolutamente gigantesca. Praticamente qualquer locação que o Mestre venha a precisar em suas aventuras pode ser imaginada e colocada em algum lugar dentro dessa monstruosa nave de guerra de mais de 1,4 km de comprimento por 536 metros de largura e 183 de altura.
Quando do começo do seriado, na sua nova versão, a Galactica, uma das primeiras espaçonaves deste tipo construída pelos Coloniais, estava por ser descomissionada. O clima não era de festa, mas de melancólica despedida. O fato da velha guerreira ser posta novamente à prova na batalha mais crucial da humanidade com metade da tripulação nominal, sem munição, um dos hangares transformado em museu e apenas um esquadrão de caças Viper dá o tom de toda a história – e de eventuais campanhas de RPG neste cenário: sobreviver apesar das (muitas) dificuldades!
Compartilho com vocês também um esboço que fiz da Galactica segundo as regras da série de suplementos GURPS Spaceships (download no final do artigo). Minha principal fonte de informações técnicas foi o site Battlestar Wiki (http://en.battlestarwiki.org/), especialmente a página dedicada à Battlestar Galactica do seriado mais recente (http://en.battlestarwiki.org/wiki/Galactica_(RDM)). Deixo também a ficha do famoso caça de superioridade espacial Viper Mk II e de uma nave de mineração da Frota, a Monarch. Assim como os NPCs, esses esboços foram minhas primeiras tentativas de criar espaçonaves usando as regras dos suplementos GURPS Spaceships. Aliás, tomei algumas liberdades com as regras para encaixar a descrição das naves com as regras de GURPS, sobretudo com a regra de usar sistemas de SM menor do que o da nave. Por favor me avisem se encontrarem algum erro.
- Battlestar Galactica
- Viper Mk II
- Monarch Mining Ship
Faça aqui o download do material para [download id=”82″ format=”3″]
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Recursos de consulta
Sites e livros de RPG que podem ser consultados para elaborar uma campanha de Battlestar Galactica incluem:
- Battlestar Wiki (http://en.battlestarwiki.org/): a mais completa fonte de informações sobre Battlestar Galactica na Web é uma wiki com informações sobre todas as versões da série, resumos de episódios, discussões detalhadas sobre a tecnologia, sociedade, cultura e história dos Coloniais e Cylons, bem como dados técnicos sobre todas as espaçonaves mostradas no seriado. Indispensável, mas cuidado com os spoilers se você ainda não assistiu toda a série!
- Battlestar Galactica Role Playing Game Corebook: trata-se de um livro capa dura de 232 páginas, em cores, publicado em 2007 pela Margaret Weis Productions. O sistema usado é o d20 e as regras ocupam a maior parte do livro. Além disso, as informações de cenário não são mais detalhadas ou precisas do que as do Battlestar Wiki. De toda forma, a leitura é agradável e apropriada até para quem nunca jogou RPG ou nunca assistiu o seriado. Ponto forte: o capítulo seis, Vehicles, principalmente as ilustrações internas da Galactica e outras grandes naves da Frota como a Astral Queen e a Olympic Carrier.
- GURPS Spaceships: uma série de sete suplementos para GURPS com regras para construção e uso de espaçonaves. O primeiro livro, chamado apenas de GURPS Spaceships, é o livro básico, mas os suplementos GURPS Spaceships 3 – Warships and Space Pirates e GURPS Spaceships 4 – Fighters, Carriers and Mecha também podem ser bastante úteis para, respectivamente, incrementar o sistema de combate e projetar os Vipers e Raptors. Ah, as regras para componentes maiores ou menores usadas nos meus designs de espaçonaves estão no GURPS Spaceships 7 – Divergent and Paranormal Tech.
- GURPS Space e GURPS Ultra Tech: ambos podem ser usados para enriquecer uma campanha de GURPS Battlestar Galactica. Em particular, GURPS Space menciona um tipo de campanha chamado Survivors and Refugees (p. 13) cuja leitura pode ser útil; a referência dada é justamente Battlestar Galactica. No GURPS Ultra Tech, a leitura das seções sobre os caminhos evolutivos Retrotech e Safe-Tech (p. 10) pode ajudar a entender a tecnologia do cenário de Battlestar Galactica.
Por Marcelo Cortimiglia
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eslima
Opa material de primeira!, grato por compartilhas suas ideias; como você disse mesmo “pouco tempo para se dedicar a uma campanha”. O material e a referência de apoio esta excelente.