Resenha – Rastro de Cthulhu

Antes de começar esta resenha, é necessário informar que eu NUNCA havia jogado qualquer jogo sobre Cthulhu ou lido qualquer conto de H.P. Lovecraft (o criador dos Mythos, só para esclarecer). Desta forma, dificilmente eu poderia ser considerado um fã ou uma pessoa entendida neste assunto. O porquê desta informação? Bem, o jogo me surpreendeu de forma muito positiva, e as considerações virão abaixo.

Rastro de Cthulhu (RdC) é um RPG escrito por Kenneth Hite, baseado nas histórias de H.P. Lovecraft, que adota o sistema de regras Gumshoe, de Robin D. Laws. E bem, a união entre o estilo e o sistema de regras pareceu resultar em uma combinação muito feliz: o Gumshoe é voltado para aventuras de cunho investigativo, fazendo com que o Guardião (Narrador) siga oferecendo pistas para os Investigadores (Personagens dos Jogadores), conduzindo-os a uma terrível verdade, capaz de estilhaçar mentes e levar os sobreviventes aos limites da sanidade. Vejamos rapidamente como isto funciona.

Sugere-se que o jogo seja ambientado na década de 1930, que é o período em que grande parte dos contos foi originalmente ambientada, mas que pode facilmente ser ambientado em qualquer período da História. Também se pode escolher o tipo de jogo que se deseja: uma história Purista, com Investigadores lutando para ao menos sobreviver à descoberta dos Mythos (de preferência lúcidos), ou um jogo Pulp, onde se tem personagens mais ativos e aventureiros, mais propenso a cenas de combate direto.

Mas quem são estes investigadores? Em sua maioria, pessoas normais que descobriram acidentalmente algo que, com certeza, prefeririam não saber. O primeiro ponto na criação destes investigadores é a definição de sua Ocupação, basicamente sua profissão mundana. Pode-se escolher entre 19 delas, como cientista, enfermeira ou piloto. A Ocupação ajuda a determinar seu grau de Recursos, bem como permite a compra de algumas Habilidades pela metade do preço. Posteriormente, o jogador deve escolher a Motivação do seu Investigador, que esclarece o porquê dele estar dentro de uma investigação tão perigosa, variando entre a busca por Aventura ou simplesmente Má Sorte.

São distribuídos, então, os pontos para comprar as Habilidades Investigativas e as Habilidades Gerais, sendo que a sua quantidade varia de acordo com o número de Investigadores presentes na aventura, equilibrando o grupo. As Habilidades Investigativas permitem ao Investigador identificar pistas durante a aventura (ex.: Fotografia permite perceber que uma imagem foi alterada de alguma forma), sem a necessidade de testes, basta ter um ponto na Habilidade e você recebe a pista. Isso evita que informações importantes para a resolução do caso se percam e os investigadores fiquem encurralados. Entretanto, estes pontos podem ser gastos para conseguir resultados melhores e pistas que facilitariam a vida dos jogadores (ex.: descobrir que aquela fotografia adulterada só poderia ter sido modificada em um estúdio específico).

As Habilidades Gerais, por sua vez, são usadas bem mais na vigência de testes, e representam as outras características do Investigador, tanto seu talento em combate como parâmetros diversos (Vitalidade, Sanidade…). Seu funcionamento está sujeito ao resultado dos testes, logo, ao acaso, podendo falhar.

E como são feitos os testes? Basicamente, joga-se um dado de 6 e compara-se à um valor alvo (normalmente 4). Caso maior ou igual, o Investigador obteve sucesso. Nestas jogadas, pode-se gastar quantos pontos o jogador desejar, que serão adicionados ao resultado, aumentando a chance de ser bem sucedido. Isto cria uma mecânica bem interessante, uma vez que não se sabe quando (ou se) estes pontos retornarão, deixando os personagens em situação bem delicada caso fiquem sem ter o que investir nos momentos mais difíceis. O que fazer quando 20 abissais se aproximam e toda a reserva de Fuga do personagem já se foi?

Por fim, são definidas as Fontes de Estabilidade (pessoas importantes na vida do Investigador, com as quais ele pode, por algum momento, esquecer dos horrores vistos e se recuperar do trauma psicológico sofrido) e os Pilares da Sanidade (os princípios em que se acredita, seja a fé religiosa ou a crença na bondade inata do ser humano). Estes parâmetros são importantes para determinar duas Habilidades fundamentais no jogo, a Estabilidade (sua capacidade em suportar o trauma mental) e a Sanidade (que mede o quão próximo se está da loucura, devido ao conhecimento da grande verdade). Sua grande relevância está no fato de que, enquanto em outros jogos, os personagens derrotam o vilão e recebem fama, riqueza e prestígio, em RdC os investigadores, no geral, terminam mortos ou loucos. Mas acredite, a forma como isto acontece é extremamente interessante e divertida.

Após a o capítulo de criação de Investigadores e de Regras do sistema, o livro segue com um capítulo sobre os Deuses do Mythos. E aqui, temos um material riquíssimo, indicado a todos aqueles que gostam do universo criado por Lovecraft. Estão lá Deuses como Chaugnar Faugn (não, eu também não sei pronunciar isso), Yog-Sothoth e o grande Cthulhu (óbvio), além de criaturas como Abissais, Carniçais, Yetis, Leões, Lloigors e o Povo Serpente. São apresentadas, também, regras para encantamentos e rituais (interessante observar o declínio mental dos praticantes de magias), além de diversos cultos para serem usados como antagonistas. É muito boa a forma como as criaturas são apresentadas: vários fragmentos de lendas (alguns até mesmo divergentes), cabendo ao Guardião decidir quais deles são verdade.

RdC também conta com um espaço à ambientação, mostrando um retrato da sociedade nos anos 30, onde a pobreza, a fome e a guerra eram tão presentes quanto as ameaças dos Grandes Antigos. É apresentada a situação de diversos países (Brasil incluso) e como os Mythos afetavam cada porção do continente. Além de dicas para narrar histórias dentro do universo cthulhuniano, juntamente com uma aventura pronta (O horror em Kingsbury, que é baseada em fatos reais. Muito interessante e bem construída).

Por fim, o livro traz quatro apêndices: o primeiro ensina a converter as regras do antigo Call of Cthulhu para o novo RdC; o apêndice dois mostra uma coletânea de fontes de inspiração, de livros a filmes, para dar um gostinho ainda melhor à experiência; o terceiro apêndice contém materiais úteis ao Guardião, como tabelas e a ficha de personagem, facilitando seu trabalho; enquanto que o último apêndice apresenta um breve histórico dos autores do livro (com ilustrações bem humoradas mostrando o que acontece com quem brinca com os Grandes Antigos).

Entretanto, existem alguns pontos não tão brilhantes neste lançamento da RetroPunk. Apesar de a tradução estar muito boa, diversos erros de digitação e de revisão (no índice, Rituais do Mythos está na letra F) acabaram passando. São erros menores e que não comprometem a leitura, mas pessoas chatas (como eu) sempre acham este tipo de coisa. Por falar em leitura, o texto todo é muito bem escrito, com diversas citações das obras de Lovecraft para ajudar a entrar no clima, entretanto, por vezes, temos a impressão de estar lendo um conto apenas, o que acaba tornando confusa a parte do livro destinada às regras.

Explicando melhor, muito do sistema é exposto por meio de exemplos, então o entendimento da mecânica acaba se tornando um pouco difícil de pegar de primeira. Também existe a possibilidade de eu ser mais lento para entender que a média mundial, nunca se sabe…

A simplicidade do sistema também é algo que se deve pontuar. Se por um lado o sistema permite um avanço rápido do jogo, sem paradas para consultar uma regra perdida em uma tabela qualquer, por outro lado, jogadores acostumados a sistemas mais técnicos (sim eu jogo D&D) podem ter alguns problemas para se adaptar. Como fazer para imobilizar um inimigo sem as regras de Agarrar? Quantas ações um Investigador pode realizar por turno? E de que tipos? Entretanto, no decorrer das sessões de jogo, é impressionante como o sistema se mostra funcional, e, com bom senso (e conhecimentos de regras de outros sistemas) estas dificuldades vão desaparecendo. Logo, jogadores mais experientes provavelmente terão um aproveitamento melhor.

RdC possui 248 páginas, e possui um acabamento de primeira: capa dura e papel de excelente qualidade, mantendo o padrão esperado para grandes editoras. É brilhantemente ilustrado por Jérôme Huguenin, cujas ilustrações de alto nível passam muito bem o espírito do jogo. A coloração em tons acobreados ainda ajuda a criar um efeito de que o livro é vítima do passar dos anos (e ataque da umidade).

O jogo consegue facilmente atingir seu objetivo: possui um sistema ágil, muito bem adaptado a jogos de investigação, e com uma ambientação magnífica. Sua leitura prazerosa e conteúdo completo o tornam, ainda, uma excelente fonte de referência até mesmo para quem não joga RPG, apresentando teorias bastante interessantes e fornecendo um material muito bom sobre os Mythos. Alguns previews podem ser baixados do site da Retropunk (http://portal.retropunk.net/?q=node/204), mas cuidado, vocês podem acabar comprando este livro depois de baixá-los, como aconteceu comigo.

Desta forma, só resta parabenizar a RetroPunk por trazer ao mercado brasileiro um título de qualidade. Esperamos mais títulos como este, antes do alinhamento das estrelas.

 

Notas (de 1 a 6)
Texto:
4
Conteúdo: 5
Arte/layout: 6
Nota Final: 5

 

Por: Victor Lopes

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1 Comment
  1. Excelente livro, muito boa a resenha.

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