“Live Action? Nem morta. Eu só jogo mesa. Vê lá se eu vou ter coragem de jogar live. Eu sou tímida, sabia?!”
Entre essa frase e eu existem agora cerca de 15 anos… e muitos Lives. Como jogadora e como mestre. E até pouco tempo, quando jogava mesa, eu causava comoção: “Ei, desceu do pedestal?! É mesa, não é live não, viu?!”. Eu virei jogadora de live. E o troco de olhos fechados por qualquer jogo de mesa por melhor que ele seja!
Não, eu não deixei de ser tímida, mas descobri que jogar Live não só é um excelente exercício pessoal, como muito mais fácil do que jogar mesa. No processo de absorção do personagem, falar e tomar decisões pelo personagem sai muito mais facilmente do que num jogo tradicional, em que a distância entre os personagens e você é muito maior.
Claro que é preciso um certo processo para quem quer jogar um Live com o personagem na ponta da língua. Os tópicos abaixo não possuem uma ordem exata, pois estão todos interligados… Mas todos partem do princípio que, se você “entrar na pele” do seu personagem e deixar o Live fluir sem interrupções, com o tempo as suas inibições caem e você se sentirá exatamente como um ator que está no palco dando vida de forma convincente ao personagem que está representando, mesmo que ele seja o oposto de si mesmo e que, na vida real, o ator seja tímido e introvertido…
1 – O Background
Independente de se tratar de um personagem semi-pronto entregue pelo mestre ou se totalmente criado por você, seu personagem precisa de uma história pregressa. Ninguém precisa escrever um livro contando-a (embora alguns já tenham feito isso… Mea Culpa, mas a Tati Ricci também!), mas ele precisa ter nascido em algum lugar, crescido, se tornado o que é hoje. Tente pensar em coisas que ele viu, sentiu ou fez, que não estão diretamente ligadas aos eventos atuais que serão usados no Live, mas que contribuíram para lhe construir a personalidade: as coisas que ele acredita, a forma que se porta, os defeitos e as qualidades que o definem como alguém único. Seu personagem precisa ter uma história de vida para contar, nem que seja apenas para você mesmo!
2 – A Pesquisa
Seu personagem não está desvinculado da história que o cerca. Se o Live é baseado no nosso mundo, pesquise o período de vida do seu personagem. Grandes eventos, descobertas, situação política… O perfil do seu personagem reflete no perfil da época em que ele vive ou viveu, e vice versa. Se o Live é ambientado em um mundo fictício, converse com os mestres, tente entender a ambientação usada para fazer uma clara idéia de qual a opinião de seu personagem para cada evento que ele presenciou.
Se o seu personagem é influente e poderoso, pense em quais eventos podem ter sido totalmente ou em parte responsabilidade dele. Se ele é um aventureiro iniciante ou um vampiro recém criado, imagine pelo menos o que ele achou de tais eventos históricos que presenciou. Interaja com a ambientação o máximo que você puder.
3- As Crenças
Por ter vivido o que viveu, no período que viveu, seu personagem tem uma visão de mundo, crenças, idéias que são especificamente dele. Por exemplo, ele pode adotar uma corrente filosófica e/ou uma religião. Deve ter um código de honra ou, no mínimo, um código de conduta (nem que seja o “fazer sempre o que quer”). Como todo ser vivo, ele se pauta por alguns pressupostos e irá reagir aos eventos futuros tomando-os por base. Uma vez escolhendo a filosofia , religião e código de conduta de seu personagem, pesquise-as e elabore uma interpretação que ele possa ter feito desses pressupostos. Saber o que o seu personagem pensa do mundo e as coisas em que ele acredita, são passos necessários para entender como ele reage e deixar que essa visão de mundo guie você na interpretação.
4 – Interações
Seu personagem possivelmente conhece todos ou quase todos os outros personagens do jogo. O Live Action, seja contínuo ou “one shot” (live de uma noite só), é um recorte no tempo e no espaço de uma determinada ambientação, e parte do pressuposto que houve um passado e que, se tudo der certo, haverá um futuro! Já concordamos que você precisa construir esse passado, mas ele não depende só de você.
Faça um pequeno resumo público (o que é conhecido por todos que já ouviram falar do seu personagem) e distribua entre os outros jogadores, pedindo o mesmo para eles: um resumo público dos personagens que eles irão representar. Compare os resumos e tente achar pontos convergentes (coisas que vocês possam ter feito juntos, ou que pensavam da mesma forma, logo poderiam ao menos compartilhar idéias…) e divergentes (coisas que gerariam animosidades ou pelo menos desconfortos entre seus personagens) e troque idéias com os outros jogadores. “Quando seu personagem apoiou o Golpe Militar, o meu personagem falou para o seu que…” . Começar o Live sabendo exatamente o que seu personagem pensa de todos os outros é muito mais fácil do que no meio do jogo, entrar em off (sair do personagem) para perguntar: “Mas escuta, porque diabos meu personagem faria uma aliança com o seu?” – Se você, jogador, já conhece de antemão o personagem com quem o seu está interagindo, pode decidir sem parar o jogo, se aceita, recusa ou finge aceitar a tal aliança.
Lembre-se que a imagem pública nem sempre é a verdade. O seu personagem pode ser uma coisa e vender publicamente outra idéia. Consulte os mestres para saber se o seu personagem tem alguma razão para pensar algo diferente do que foi mostrado como público pelos outros personagens: se ele sabe algum segredo, se ouviu algum boato, etc. Use também a história criada e a visão de mundo escolhida para considerar ou desconsiderar os tais resumos públicos. Por exemplo, se o seu personagem é alguém que tem intolerância a qualquer tipo de preconceito e se depara com outro personagem que, embora tenha uma imagem pública fascinante, é sabidamente racista, você deve pesar essas duas informações e tentar decidir como o seu personagem se portaria frente a isso.
Como um complemento às interações, se for possível, peça aos mestres que realizem pequenos eventos (mini-lives ou jogos de mesa) antes do Live, para você interagir, já incorporando seu personagem, com os outros. É um pequeno exercício, para fazer o ajuste fino do que você criou e começar a sentir seu personagem ganhando vida. Este passo irá ajudar você a bolar as coisas que faltam para seu personagem ganhar vida própria: a caracterização e os maneirismos. Mas já iremos falar disso!
Com os quatro itens acima, você tem o seu personagem pronto: você sabe o que ele foi, o que ele é, o que ele acredita e o que acha dos outros personagens. De posse disso, você pode supor como ele irá reagir aos eventos que forem apresentados durante o Live. Mas seu personagem ainda precisa ganhar vida própria: as reações virem naturalmente quando estiver no jogo… A diferença básica entre o jogo de mesa (onde a maior parte do tempo você diz o que o personagem irá fazer) e o Live Action (onde a maior parte do tempo você faz o que o personagem irá fazer), é justamente que no Live tudo acontece em “ON” (pensar como o personagem e agir como o personagem): você não irá dizer o que seu personagem irá fazer, irá simplesmente fazer. Para isso, além da história (e pensamentos e interações) do seu personagem na ponta da língua, existem 2 dicas básicas para ajudar a “entrar em on”:
1 – Caracterização
Independente de algo obrigatório (roupas de época, por exemplo) que seja necessário que o personagem use, imagine, de acordo com a personalidade já criada, o que o personagem, se fosse real, usaria. Se o seu personagem é alguém sério, usar uma camisa florida não irá ajudar, nem aos outros a entenderem seu personagem, nem a você a “entrar” no espírito e agir como se o personagem fosse real. Pequenos detalhes, como um cordão ou uma forma de pentear os cabelos. podem ser suficientes. Eventualmente todo um estilo diferente do seu próprio tem que ser adotado. Não compensa obviamente adquirir um guarda-roupa inteiro de roupas que não serão aproveitadas por você na vida real, mas use sua criatividade para imprimir ao seu personagem algo que o diferencie de você mesmo.
Sobre o Bruno e seu personagem
(foto desse tópico).
Conheci o Bruno em “ON”, ou seja, primeiro meu personagem Clair conheceu o Karel no dia da foto do artigo anterior (facil achá-lo, mas caso precise de direção: primeiro sem ser na cabeceira no sentido anti-horário da mesa…). Ele andava encurvado, os cabelos despenteados, a roupa desgrenhada, falava grosso e de forma gutural, quase que por monossílábos e tinha intimidação natural atingindo a estratosfera. Senti minha perna tremer, e só conseguia pensar, em On e em Off, “Que sujeito assustador!”. Foi meu primeiro Live e minha prova de fogo: não pular a sacada do prédio onde faziamos o Live de pânico e intimidação! Passada a cena, já era fim de jogo, ele se endireitou, puxou os cabelos pra trás, abriu um sorriso desses de conquistar o mundo e com a voz mais doce do planeta disse: “Oi, eu sou o Bruno. E você?”. E ele entrou na lista de um dos seres humanos mais boa-praça e dos jogadores de Live mais competentes que já conheci nessa vida!
2 – Detalhes e maneirismos
Um jeito de falar, uma expressão idiomática, um jeito de parar ou sentar, um movimento de mãos… Todo mundo tem algum maneirismo, uma característica pessoal muito sua. Crie algumas para o seu personagem. São sempre coisas sutis, que normalmente passam desapercebidas pelos outros jogadores, mas que ajudam em muito a você se sentir dentro do personagem.
Lembre se que estamos falando de pequenos detalhes e que não vale à pena fazer do seu personagem uma caricatura dele mesmo, ou seja, não exagere. Quanto mais natural for a caracterização do seu personagem, respeitando os detalhes de sua personalidade e da época onde se passa o jogo, mais convincente para os outros e, mais importante, para você mesmo, ele será. E quando você estiver pronto e caracterizado, e repassar mentalmente a história de seu personagem, ele estará pronto para vir em cena.
Com uma história completa e bem elaborada, a vestimenta e os maneirismos podem parecer bobagem, mas acredite, não são. Seu personagem não é você. Ele tem uma história própria e, quando existem coisas físicas que o distanciam dele, fica muito mais fácil “entrar” no seu personagem quando o jogo começa e “sair” do personagem no fim de um live, exatamente como um ator representando uma peça.
É preciso ser íntimo do personagem, emprestar para ele características suas, mas também criar para ele características únicas e, enquanto estiver em cena, “pensar e agir” como o personagem pensaria e agiria se fosse uma pessoa real. O que só é possível quando ele tem uma história, um passado, relações, crenças e opiniões (exatamente como você tem as suas) e quando isso se reflete na sua aparência externa, no que ele veste, como ele se coloca no mundo, etc.
Parabéns. Seu personagem agora tem vida própria. Ele é só uma criação, mas é “alguém” tão rico em detalhes como uma pessoa de verdade, logo, pode pensar, de certa forma (e com a sua ajuda) por si mesmo.
E quando o jogo começar, se o seu personagem estiver bem construído, todas as características que são do seu personagem (e não suas) virão naturalmente e as reações dele também. Isso tudo, e mais algumas pequenas regras e o tal do Fair Play, são as garantias de que todo Live vai ser bom, divertido, fácil e inesquecível… Mas que regras são essas e o que diabos é Fair Play? Bom, isso eu explico nas próximas colunas!
Por Adriana Almeida
Equipe RedeRPG
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