Arquivo REDERPG: Kult (resenha)

Kult é um aclamado RPG sueco de horror sobrenatural que já teve três edições internacionais em inglês por três editoras diferentes, as três esgotadas. A excelente 3ª Edição lançada pela editora francesa 7th Circle Publishing (7eme Cercle) é ainda encontrada em lojas na internet a preço de ouro. As outras duas apenas exemplares usados. A resenha a seguir tem como base a mítica primeira edição deste soberbo RPG, que serviu como referência para o RPG Trevas da Daemon Editora. Ela foi escrita por Haroudo Xavier Filho e originalmente publicada no antigo portal em 9 de maio de 2003 (2542 leituras).


KULT

Ele havia se mudado para a casa a um mês apenas, mas era tempo suficiente para ficar quase louco com os estranhos sons que vinham do porão. Larry Lavinsky era descendente de poloneses, desempregado, e essa casa havia sido uma benção para ele. Mas após um mês vivendo nela, tudo tornara-se um inferno. Não, não era apenas o som regular e forte a surgir toda a noite em seu porão, eram também outras coisas. Como a comida a se estragar rápido demais (quando não era encontrada meio devorada); a sensação constante de algo terrível a lhe sussurar no ouvido; a água suja subindo pelo ralo, mesmo após dois encanadores lhe assegurarem que tudo estava bem…mas ele sabia o quanto não estava, cada osso seu sabia. Enfim, Lavinsky decidiu ver o que havia em seu porão.Lavinsky nunca esperou por algo assim, nem nos seus sonhos mais selvagens. Ele foi para um lugar a muito esquecido pela humanidade, mas hoje ele era um intruso e nada mais. Afinal, após ele ser caçado e quase morto, e metade de sua sanidade se perder nas ruas infinitas, nos cemitérios dantescos, nos labirintos colossais…após meses de insanidade e de uma nova sabedoria distorcida, fúria e desespero, ele conseguiu uma maneira de voltar…”

O Kult é um RPG sueco de Terror/Horror. Ele surgiu em 1991, escrito por Gunilla Johnsson e Michael Petersén, sendo em 93 traduzido para a língua inglesa, pela Metropolis. A segunda edição do jogo já está em circulação desde 96, mas esta só foi feita na língua inglesa, não ocorrendo o mesmo com o jogo na Suécia (que inclusive, parou de ser publicado, e onde era chamado de “Black Box”). Essa resenha trata em especial da primeira edição, pelos comentários (tanto de colegas do IRC, quanto de fóruns e listas de discussão do Kult) a segunda edição tem falhas com as quais não quero ter contato, que vão desde um sistema de regras falho (de acordo com um mestre de Kult, é IMPOSSÍVEL matar alguém com apenas um tiro de uma .44), quanto a severas mudanças na ambientação original.

– O cheiro, e as marcas no chão indicam que ele esteve aqui.”

– Então vamos, não temos tempo a perder. John, siga com Devierè e Susan, eu vou pelo túnel ao nordeste.

Os Angelis são membros de uma sociedade antiga, inicialmente uma divisão da igreja católica, responsável pela ignorância da humanidade em relação ao fato dos anjos serem tão palpáveis quanto o próprio ser humano, e dessa forma evitar o culto a esse seres. Com o tempo, a sociedade acabou por ser perseguida pela própria igreja, ao serem descobertos cooperando com seres ocultos e muitas vezes demoníacos. Hoje, ela tenta capturar, matar, e manter aprisionados os poucos anjos restantes após o desaparecimento de Demiurge, como tem a tarefa de evitar que os antigos anjos caídos sejam de alguma maneira libertos de seu cativeiro…

John, Susan, Devierè, Chloe e Farley são membros de uma célula localizada em Vancouver, e Lavinsky é sua caça.

Para Larry Lavinsky, o pesadelo vivido nos últimos 7 meses parecia não apenas não haver terminado, como se tornara ainda mais real. Na Ilusão, o lugar habitado a tanto pela humanidade, ele sumira por 5 anos, e sua nova habilidade de enxergar através dos planos e ver campos de luz em volta das pessoas, só lhe servia para manter em permanente estado de desespero. Com medo dos poderosos Azghoul, ou dos animalescos Ferocci a cada despertar nos becos que aprendera a dividir com mendigos.

O medo o ajudou a presentir os seus perseguidores, e suas cores trairam suas intenções. Lavinsky foi para os esgotos, onde fizera estranhos amigos, amigos que vieram a compreender sua viagem, e seu medo…”

A ambientação do Kult gira em torno de conceitos retirados diretamente da Kabbalah e do Gnosticismo. Demiurge, um ser de extremo poder, aprisionou toda a humanidade na Ilusão, ou seja, a Terra. A origem do próprio Demiurge (que vem do grego: Criador) é um mistério. Ele poderia ser um de nós que por um motivo misterioso revoltou-se, ou até uma entidade qualquer além de nosso plano. Após nosso aprisionamento, ele criou em Metropolis os seus Archons, e estes o ajudaram a manter a nós, humanos, na nossa prisão. Seu irmão, Astaroth, rege o Inferno, onde a espelho de Demiurge, criou os Death Angels, para também vigiar a humanidade. A Ilusão nunca deveria deixar de existir, se não fosse o estranho desaparecimento de Demiurge a 200 anos atrás, e sem ele, uma impressionante explosão de cultura e ciência que leva o homem a cada dia mais próximo de romper seu cárcere aconteceu. A cada dia as barreiras entre a Ilusão, e os outros planos se tornam mais frágeis, obrigando Astaroth a juntar suas forças para o momento de um eventual apocalipse, quando as forças do Inferno serão a última barreira contra a libertação do homem. Por sua vez, os Archons lutam para escolher um novo Demiurge entre eles e evitar sua queda.

Ao contrário de outros RPG e conceitos sobre Céu/Inferno, no Kult, apesar de disputas entre Archons e Death Angels, eles são conscientes quanto a sua tarefa, e a cumprem a despeito das diferenças de seus reinos. Todos humanos são imortais, isso foi algo que Demiurge não pode, ou não quis retirar da humanidade; mas após morrermos, os humanos são mandados para o Inferno onde serão torturados até perderem quaisquer lembranças de quem eram, assim podendo retornar, reencarnando em uma nova vida. Metrópolis cuida através de seus Lictors (nossos principais carceireiros, que se infiltram em governos, religiões, exércitos) de nos manter sempre na ignorância da verdade sobre nossa real existência e legado divino.

Os planos além da Terra não são poucos, mas os prncipais se resumem a: Metropolis, a cidade infinita, onde vivíamos antes de sermos exilados na Terra, e a qual o homem ainda lembra o suficiente a ponto de tentar espelhar em cada cidade que já criou, que existe hoje, e que um dia irá construir; Inferno, onde reina Astaroth e seus Death Angels, onde proliferam as legiões infernais, e onde aguarda a punição de cada ser humano desencarnado; O Mundos dos Sonhos, onde o próprio material dos desejos da humanidade podem ser moldados; Gaia, o plano vivo, onde até as pedras são seres viventes, o antigo jardim da humanidade.

O próprio “bestiário” do Kult é enorme, e varia desde comuns vampiros e lobisomens, até demônios bem incomuns e vermes assassinos que matam em poucos dias após penetrar pela boca ou ânus da vítima. Além das criaturas de Metropolis e do Inferno, existem seres que povoam o mundo dos sonhos, as profundezas da terra, e divindades esquecidas que ainda rondam a Ilusão…

Lavinsky fez amigos. Estes amigos gostam do escuro, cultuam uma deusa que vive no centro da Terra, e não gostam da luz do Sol. E os perseguidores de Lavinsky não sabem disso…

– Farley, você ouviu isso? Parecia a Susan…

O sistema de Kult se resume a 1d20 (um dado de vinte faces), mas testes usando 1d10 ou 1d5 também existem, apesar de raros (com exceção dos testes de iniciativa usando o 1d10), e todos podem certamente usar apenas 1d20. A criação do personagem, e o sistema em si, é similar ao GURPS, mas alguns detalhes como os Dark Secrets e Vantagens e Desvantagens que refletem não uma “vantagem” em termos de liberdade de ação e melhorias diretas no personagem, mas o Mental Balance, uma medida do quanto o personagem é mais afinado com o “bem” ou o “mal” (favor não confundir com Alinhamento).

O sistema é bom e rápido também em situações de combate. Mesmo havendo uma boa quantidade de redutores, e regras específicas para artes marcias e combates com veículos, assim como para danos feitos por doenças, venenos e fogo; ele ainda é rápido e bem funcional.

A criação do personagem pode ser demorada (de 1 a 4 horas para iniciantes, dependendo do quanto o mestre seja exigente em relação ao background da personagem), mas ela é realmente completa, e após terminada, a visualização do personagem como uma coisa realmente viva, vibrante, será fácil.

A coisa vinha arrastando o corpo de Susan colado ao seu, o “absorvendo”. Chloe atirou duas vezes, mas desistiu ao ver as balas ricocheteando no exoesqueleto metálico do monstro. Farley, correu imediatamente em direção oposta, seguido de perto pela garota, mas escorreu em algo, um rato talvez, pelo guincho que ele ouviu. Seu rosto chocou-se com o concreto coberto de fezes, e logo sentiu algo mordendo sua pernas. Chloe ouvia o grito de Farley, mas só pensava no rosto de Susan, ainda tentando falar, mesmo colada aquela pústula no olho de Deus que ela encontrara nesses malditos esgotos…

Lavinsky ouvia os gritos com satisfação. Não precisaria sentir mais medo por muito tempo, mas para se assegurar, foi para a saída mais provável do esgoto, o local onde ele receberia quem quer que sobrevivesse ao Cairath…”

Bem, como eu dizia antes…o Kult é um RPG de Terror/Horror, e não tem adversários para ele atualmente no mercado de RPGs. Você poderia dizer: “E quanto ao Vampire, COC, In Nomine, The Whispering Vault e The Rapture?”. Ok, são também fascinantes jogos de T/H, mas o Kult quando não enfoca outros pontos não abordados por esses jogos, é um conjunto do que há de melhor entre os melhores. O Kult é mais cru (do ponto de vista não apenas de violência gráfica/visual/narrativa, mas também psicológica) que o The Whispering Vault ou The World of Necroscope. Ele concebe terrores tão ensandecedores e inenarráveis quanto o COC. E proporciona redes de intriga tão vastas e interessantes quanto o Vampire, ou The Rapture. Suas lutas entre divindades superam as escalas do In nomine e do The Rapture. Além disso, Kult é bem definido quando separado por duas correntes principais de mestres e jogadores que o praticam, tornando o jogo bem diferente a partir do momento em que o mestre opta por uma delas: A corrente Hellraiser/ElmStreet e a corrente X-files/TwinPeaks (Eu particularmente prefiro um pouco de cada, com um sutil predomínio da primeira ::)) ).

A primeira linha de jogo, tem como base a brutalidade imediata que pode ser facilmente trazida a tona em qualquer partida; sendo esta quando tratada de forma correta, uma verdadeira arte, a arte do grotesco, do assustador, do medonho, que poderá assustar o mais violento e frio de seus jogadores, e afastar os mais fracos; mas, o terror desta linha de jogo, não deve ser tratada puramente como uma banho de descrições de como “como funciona os orgãos internos de um ser humano após seu ventre ser rasgado de lado a lado, e estes estando pendentes pelo buraco que fora aberto”. Não, por Cristo! A destruição em Kult deve ser feita com esmero, ou não passará de um típico Hack and Slash que pode ocorrer até em uma sessão de AD&D, apenas com monstros mais feios. Ele deve não apenas manipular a violência física, mas também psicológica, e até, atacar o próprio jogador nesse sentido, e não apenas o personagem, tornando a partida um ponto único de tensão, onde toda a força da violência física, sexual e psicológica do jogo, possa ser sentida, e imaginada com toda a sua força, pelo jogador. Isso por vezes é inquietante para alguns jogadores, e o próprio bom senso do mestre deve guiá-lo quanto a maneira de exercer esse tipo de linha em suas aventuras.

A segunda, utiliza largamente os elementos da ambientação do jogo, em que anjos e demônios (além de dezenas de outras entidades e cultos) lutam pelo controle e/ou destruição da Ilusão (a Terra). O clima paranóico e de suspense ao lado da própria “estranheza” que o mundo de Kult pode adquirir, é absolutamente incrível nessa linha. Pense na quantidade mesmo que pequena de Lictors (servos dos Archons) empregados em controlar as forças militares do mundo (imagine um Lictor como um general de 5 estrelas no Pentágono, ou um chefe da KGB), ou infiltrado nos governos (Al gore um Lictor???). Ao contrário de outros jogos que se utilizam de conspirações como seu tema principal, no Kult você está CONTRA a conspiração, e não dentro dela. E é claro, quando a conspiração é em escala divina, e a ponto de ter moldado toda a História da humanidade, a coisa fica um pouco complicada.

Chloe correu por entre os esgotos, e enfim, conseguiu sair. O Cairath não a perseguiria do lado de fora, mesmo durante a noite. Ela estava salva. Pelo menos foi o que ela pensou. A garrafa as mãos de Lavinsky rachou seu crânio. Chloe caiu…sem sentido…talvez morta. Para Lavinksy isso não importava, era apenas um presente para seus amigos de baixo…

Haroudo Xavier
Cedido à Equipe REDE RPG
(Publicado anteriormente na TRAILS-RPG)

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