Diário de Philip Stengel, 25 de março de 2002, Nova Orleans.
Sempre achei o hábito de escrever em um diário meio infantil. Adolescentes que morrem de amores por algum rapaz são quem mantém uma coisa dessas, mas meu terapeuta recomendou e só por isso estou a redigir. Ah, eu lembro que minha esposa costumava escrever contos de amor e aventura, ela dizia que seria bom ler todos eles para os nossos futuros filhos. Marie morreu em um acidente de carro mês passado.
Hoje acordei como os outros dias desde o acidente: exausto, deprimido e sem vontade de fazer nada a não ser chorar na cama. Não entendo como aquele tratamento pode me ajudar. Eu não sinto fome, a única coisa que sobrou foi o vazio. Um vazio dentro de mim que apenas quer sugar tudo o que restou de minha alma. Se é que restou algo.
Minha vida era Marie, sem ela eu realmente não sei se posso continuar vivendo. Dizem que quando estamos tristes é que os artistas interiores se revelam, sendo a morte uma grande fonte de inspiração. Mentira.
Nosso… Meu apartamento era grande e espaçoso, além de servir como moradia, ele também era meu ateliê. Ficava localizado em um prédio residencial de classe média no Garden District, um ótimo bairro para se viver. As ruas eram abarrotadas de casarões e prédios antigos, um espetáculo para os amantes da arte moderna.
Dentro de minha sala, manchas e latas de tinta de todas as cores se espalhavam pelo chão e pelas paredes, telas de todos os tamanhos carregavam a minha inspiração em diversas formas. Até sujeira também era minha companheira.
Lembro que Marie tinha mania de limpeza, ela sempre reclamava… Eu não vou mais ficar negando o que aconteceu, não há como esquecer. Contarei tudo, pois a culpa não me deixa em paz.
Naquele maldito dia, ela iria sair para fazer uma surpresa para mim, porém tivemos uma briga feia e não estávamos nos falando há algumas horas. Eu estava na sala, como sempre, com as mãos sujas de tinta em frente a uma de minhas telas tentando finalizá-la, quando Marie apareceu.
“Philip, me dê as chaves do carro.”, sua voz estava autoritária e sua mão estendida para mim, enquanto um raio de sol refletia em seus cabelos negros e fazia brilhar seus olhos azuis. Ela ficava linda com raiva, mas naquele dia eu podia sentir que ela estava magoada. Marie havia pedido para que eu me livrasse de todo o lixo que se acumulava em nosso apartamento. Disse que faria mal a saúde.
“Saúde de quem? Nós moramos nesse apartamento há três anos e nunca tivemos um problema por causa da tinta!”, eu estava de cabeça quente, pois meu prazo de entrega do quadro estava se esgotando.
“Isso não importa, pessoas novas que chegarem por aqui podem passar mal com esse cheiro e toda essa química. Até nosso quarto está infestado!”
“Só diz isso por que comeu alguma coisa tóxica e está vomitando de vez em quando. Seu enjôo não é problema meu. Saia do apartamento se não estiver à vontade e me deixe em paz!”, eu não estava pensando naquele dia, mas mesmo sabendo que o carro precisava de uns reparos, entreguei a chave para ela. Foi o pior erro que eu já cometi em toda minha vida.
26 de Março – Essa coisa de diário até que é interessante. Não posso dizer que estou me sentindo bem, mas acho que melhorei um pouco escrevendo sobre o que houve. Mas pensar que eu poderia ter evitado aquilo se tivesse sido mais gentil e não apenas pensando em mim mesmo… Perdi meu grande amor, o sabor de viver e o de pintar, mas talvez escrevendo possa desabafar por enquanto.
28 de março – Hoje eu não saí de casa para nada. Um forte temporal caiu sobre Nova Orleans e apenas fiquei olhando da janela a paisagem cinza e triste que era essa cidade desolada. O vento frio podia não chegar até mim, mas eu pude senti-lo através do vidro de minha janela. Aquela sensação me lembrou de como estou sozinho e o quanto era quente estar nos braços de Marie.
Eu nunca sentiria novamente o calor que o corpo dela emanava por dentro, não ouviria mais a voz sedosa de cantora que ela tinha e nem veria aqueles finos lábios vermelhos se abrindo em um sorriso brilhante. Minha branca de neve havia dormido para sempre, e um beijo de seu príncipe encantado não poderia acordá-la.
Comecei a empurrar meu próprio corpo para o vidro da janela, para que eu por inteiro sentisse o frio da solidão. De repente o telefone tocou. Corri atravessando o ateliê/sala e puxei-o do gancho, como se estivesse esperando ouvir a voz de Marie do outro lado.
“Alô, senhor Philip?” uma voz grossa perguntou.
“Sim, sou eu. Quem está falando?” respondi desanimado.
“Aqui é o secretario do senhor Miller. O prazo final se acabou e quero comunicá-lo que o pedido foi cancelado.” E o telefone ficou mudo. Já era o terceiro quadro que perdia esse mês. Mas eu não estava me importando. São apenas imagens. Não há mais nada de mágico na arte sem Marie.
Como não estava com fome, tentei pintar algo, em vão. O prazer tinha mesmo desaparecido. Apenas formas sem vida brotavam na brancura das telas. Eu apenas corrompia a pureza do branco.
Entrei no nosso… Meu quarto para procurar algo que me desse uma lembrança feliz e nítida de Marie, com a intenção de encontrar uma foto dela sorrindo ou algum de seus contos. Enquanto vasculhava suas gavetas, encontrei um envelope com o emblema de um laboratório e o nome de Marie escrito nele. Quando abri e comecei a ler vi que era um exame de sangue e o resultado de um teste de gravidez.
Positivo.
Desesperei-me e caí em prantos. Um lago de lagrimas descia de meu rosto enquanto eu arrancava cabelos de minha cabeça. Caí no chão, e lá fiquei por várias horas chorando, me contorcendo de dor. Em breve seria pai e não sabia.
Marie estava enjoada alguns dias antes de falecer. Ela foi fazer exames de sangue para saber se tinha algo errado com ela e o resultado tinha chegado no dia anterior a sua morte. Como eu estava ocupado de mais com a pintura, tinha me esquecido de perguntar. Pessoas novas… Ela apenas pensava na saúde de nosso futuro filho…
Não consigo mais escrever.
12 de abril – Hoje andei pela cidade até a noite cair, tentando fazer uma caminhada e ver se esquecia o meu sofrimento. Isso foi recomendado pelo meu terapeuta. As ruas estavam apenas mais cheias do que antes, mas me sentia sozinho no meio da multidão. Eu era um assassino. Matei minha mulher e meu filho. Como isso pôde acontecer justo comigo?
13 de abril, à noite. – Ontem depois de escrever um pouco e tentando afogar meu desespero, peguei meu carro e fui ao Jean Lafitte’s Old Absinthe House, um bar que fica do outro lado da cidade, no French Quarter, um pequeno e antigo bairro de Nova Orleans. Não olhei direito para a entrada e nem para as pessoas no bar, fui direto ao garçom e pedi varias doses de Jack Daniels.
Não lembro direito o que aconteceu lá, pois me embriaguei rapidamente, mas recordo-me de ter conversado com um homem estranho. Desmaiei após algumas doses posteriores em algum ponto da conversa. Porém, um fato curioso aconteceu: eu acordei hoje à tarde jogado em minha cama, no meu apartamento.
Levantei-me e senti a dor de cabeça chegar como uma pancada. Eu estava tonto, me sentindo sonolento, minha visão estava turva e mal conseguia manter-me em pé. Essa foi a pior ressaca que eu já tive em toda minha vida. Dirigi-me à cozinha e preparei um café bem forte para mim, o que me fez melhorar um pouco.
Dei uma passada no banheiro para fazer as necessidades, escovar os dentes, tomar um banho para depois talvez ler o jornal, pintar ou fazer qualquer coisa. Quando me olhei no espelho do banheiro, vi que meu rosto estava pálido que nem uma folha de papel, e olheiras que me cercavam os olhos. Eu estava parecendo um bêbado mesmo, minha aparência estava horrível e minha barba por fazer não ajudava em nada.
Fiz o que tinha que fazer no banheiro e caí no sofá. Minha garganta estava muito seca e eu estava muito cansado. Resolvi descansar um pouco.
14 de abril – Eu quase não dormi noite passada. Logo após terminar de escrever, fiz um sanduíche e fui para o meu quarto. Quando entrei, percebi que a porta do closet de Marie estava aberta, mas eu não o abria fazia meses. Marie tinha a mania de comprar muitas roupas, por isso ele tinha aproximadamente uns nove metros de comprimento interno. Achei estranho e então o fechei. Ao deitar na minha cama, dei uma boa olhada no quarto e averigüei que estava uma bagunça: livros jogados em cima das mesas, papéis arremessados no chão e roupas no pé da cama. Não me importei, joguei o que estava em cima da cama no chão e me deitei.
Depois de comer o sanduíche, desliguei a luz através um comando de palmas e fiquei apenas olhando para o teto, pensando em Marie. Quando comecei a adormecer, ouvi um barulho característico de madeira caindo na sala e logo deduzi que uma de minhas telas havia sido derrubada. Fui ver se tinha algum gato vagabundo rondando meu apartamento, mas não encontrei nada além de um quadro jogado no chão.
Voltei para meu quarto, mas então senti uma horrível sensação de perigo, como se eu fosse uma zebra que estivesse prestes a ser atacada por um leão faminto. Virei de um lado para o outro olhando cada centímetro do quarto, mas nada havia lá. Fechei a porta e deitei. Porém, toda vez que eu começava a cochilar, a sensação de ser vigiado me atacava, tirando-me violentamente de meu sono e me deixando alerta. Assim foi até alguma hora da madrugada.
Acordei cansado e sonolento hoje e logo depois de terminar de escrever ligarei para o meu terapeuta.
16 de abril – Conversei com meu terapeuta e ele disse que pode ser algum tipo de depressão pós-traumática. Eu me acalmei um pouco e tentei dormir de novo. Mas tive novamente problemas e resolvi tomar um remédio que ele me receitou.
Acordei no dia seguinte, mas pareceu que eu não tinha dormido nada. E por incrível que pareça, minha ressaca persistiu.
Ontem precisei tomar de novo pílulas para dormir, e novamente acordei cansado, porém estava pior essa manhã: eu não consegui levantar da cama e estava tendo faltas de ar, o que não acontecia desde que eu era um adolescente, pois minha asma havia desaparecido há anos!
À noite, a sensação de ser vigiado não cessava. Parecia que apenas ficava pior. Eu olhava de um lado para o outro do meu apartamento, verificando cada móvel que lá havia e acabei constatando que alguns objetos mudaram de lugar.
17 de abril – Hoje, tentei dormir sem o remédio. Não funcionou. Mesmo com a porta trancada, eu sentia que havia alguém comigo lá no quarto. Deitado na cama, não conseguia tirar os olhos do closet de Marie. Era como se alguém me observasse por entre as frestas da porta de madeira. Abri o closet e vi que não existia nada lá, mas, antes de fechar eu podia jurar ter visto um vestido se mexer.
20 de abril – Tem alguma coisa comigo aqui no apartamento. Eu posso senti-lo. Sempre que tento dormir sem remédios não consigo e quando os tomo, eu acordo cada vez mais fraco. Anteontem eu fui internado num hospital por causa de uma anemia. Fiz uma transfusão de sangue e melhorei. Ontem pude sair do hospital, mas quando voltei para casa, a sensação de perigo retornou. Consegui dormir sem o remédio por causa de exaustão, mas hoje acordei completamente seco, pior do que estava antes. Suspeito de que algo está se alimentando de mim.
22 de abril – Ontem quando acordei de madrugada, vi alguém em pé do lado da minha cama. Um homem alto, pelo que pude enxergar. Estava muito escuro e no momento em que pisquei os olhos o sujeito sumiu.
Não dá. Tentei pedir ajuda, mas ninguém se importou comigo. Todos do prédio acreditam que estou ficando louco pela morte de Marie. Talvez seja.
25 de abril – Vi o homem novamente andando pelo meu ateliê de madrugada enquanto fui beber água. Mas ao atravessar a porta do quarto, novamente ele sumiu. Eu acho que alguém invadiu a minha casa, mas se for isso, por que nada foi roubado ainda?
30 de abril – Já faz alguns dias desde que eu melhorei. Porém o custo para isso foi eu sacrificar todas as minhas noites de sono, pois quando durmo, acordo mais fraco. Agora eu já tenho certeza de que alguém está na minha casa. Aproveitei e comprei uma arma para me defender, mas estou com sono. Acho que dormir uma vez não faz mal.
01 de maio – ontem acordei no meio da noite, quando senti uma dor no meu braço. Ao abrir os olhos vi o tal homem, ajoelhado na beira de minha cama com o meu braço direito em mãos e com a boca no meio das juntas. Podia sentir a dor de algo fino como uma agulha espetando meu braço.
Com o susto peguei a arma que estava de baixo do travesseiro e apontei para a cabeça dele. Disparei uma vez e ele foi ao chão. Corri para o telefone e liguei para a polícia, mas desliguei logo que alguém atendeu, afinal, eu tinha matado um homem.
Retornei lentamente para o quarto com a arma em posição para atirar e percebi que meu braço sangrava muito, mas, ao entrar não havia mais ninguém lá. O homem baleado tinha sumido.
05 de maio – Estou trancado no banheiro e ele está fora. Se ele tentar entrar, eu estou armado e vou atirar. Não consigo mais dormir. Essa coisa ainda está aqui, provavelmente escondida no closet de Marie. Ninguém acredita em mim, eu não posso fugir e nem descansar. Ele me pegou, eu sou sua refeição todas as noites. Acho que essa coisa é um tipo de vampiro ou sei lá o que. Não estou ficando louco, e estou desesperado. Ninguém quer passar pelo que eu estou passando.
Mas esse desgraçado não vai mais se alimentar de mim, não. Ele não vai mais ter seu lanchinho da madrugada. Eu já estou no meu limite, e esse monstro faminto está tentando arrombar a porta.
“Abra a porta Philip!” a sua voz até que parecia humana. Mas eu não ia deixar barato.
“Você não vai me pegar seu bastardo! Nunca mais vai poder se alimentar de mim!”
Ele continua insistindo e a porta está cedendo. Tem mais de um e eles logo vão abrir a porta, mas eu não vou deixar eles me pegarem. Em breve nos encontraremos Marie. Te amo para sempre, do seu Philip.
Fim do diário.
Relatório do oficial de polícia Paul Hudson.
05 De maio de 2002, Nova Orleans – Este diário que está anexado ao relatório é de Philip Stengel, um pintor que ficou louco após a morte de sua esposa. Seus vizinhos reclamavam de seu comportamento e após ouvir vários barulhos de madrugada resolveram chamar a polícia. E eu fui o encarregado de ver o que estava acontecendo.
Eram umas 10 da noite quando cheguei ao apartamento, bati algumas vezes na porta e ninguém atendeu. Quando ouvi gritos lá dentro e ordenei ao oficial Brendan que arrombasse a porta. Entramos e ouvimos mais gritos e ameaças de Philip vindo do banheiro. Tentamos entrar, mas a porta estava trancada, então novamente começamos a arrombar a porta.
Philip gritou que nós nunca o pegaríamos e depois de mais alguns instantes o barulho de um tiro ecoou. Forçamos mais a porta e conseguimos arrombá-la. Entramos e vimos a cena do suicídio: Manchas de sangue nas paredes do banheiro e o corpo de Philip jogado no chão com a cabeça aberta, provavelmente estourada por um tiro na boca. Em sua mão direita havia uma pistola e perto de seu corpo, seu diário. Sem um diagnostico de um médico não sabíamos o que Philip sofria. Mas provavelmente era esquizofrenia.
O que havia no diário era surreal e não levamos a sério. Procuramos por todo o apartamento e não achamos nem um homem estranho. O lugar estava vazio.
Isso não tem nada a ver com o caso e pode até ser minha imaginação, mas antes de sair eu juro que vi a janela se abrindo
Por Elves Cunha Cardoso
Ilustração de Licínio Souza
Conto vencedor do Concurso “Cidade dos Amaldiçoados”
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