Para além das bordas do infinito

Nunca pude entender uma coisa que me ocorreu, há muitos anos, numa terra distante. Eu, um mero curtidor de tecidos de Costa Partida, recebera uma proposta urgente de um grande comerciante. Uma proposta imperdível. Ele tinha uma grande encomenda de tecidos púrpuras, mas em nenhum lugar encontrava os malditos caramujos para tingir os panos. Realmente, em toda Costa Partida, há muito que não se via de tais criaturas, já por demais raras naquela época.

Mas o comerciante vislumbrava uma saída. Ele conseguira, de um pirata viajado, a notícia de que muitos desses bichos poderiam ser encontrados numa ilha distante, no leste longínquo. O pirata passara por lá em sua última viagem e as criaturas eram tão abundantes, que as próprias águas do mar, em torno aos rochedos, eram das cores dos reis.

Mas o comerciante tinha um problema: não encontrava nenhum homem de confiança para mandar na missão. Sem mais esperanças, me implorou que fosse e que, já no caminho, viesse a preparar a tintura, a fim de não perder tempo e acatar as ordens Reais. Sem mais opções, aceitei.

Antes não tivesse aceitado. Viajamos muitas semanas em mar tranqüilo, mas quando nos aproximamos da tal ilha dos caramujos, fomos pegos por uma tempestade terrível e repentina, que cresceu sozinha no meio de um dia claro e límpido. Ventos furiosos jogaram nosso barco de encontro aos rochedos, partiram os mastros, rasgaram as velas, fizeram os cascos rangerem como madeira de assoalho velho. Naufragamos. Perdemo-nos todos. Mas então, quando despertei, estava em uma praia vazia. Comigo apenas restos de escombros do barco. Caminhei pela praia, desorientado e, por uma tal sorte do destino, encontrei o contramestre F. e o velho cozinheiro do navio, P., ambos ainda vivos, agarrados nos restos do mastro da gávea.

Por sorte – ou por alguma outra coisa que não sei explicar – não estávamos feridos e conseguimos nos organizar. O velho P. caminhou em busca de lenha seca e, sabe-se lá como, providenciou fogo para uma fogueira. O contramestre encontrou um barril com mantimentos que tinha sido trazido pela correnteza de nosso barco, junto com nossos corpos, e eu achei um pequeno córrego, ínfimo, de água doce. Não dormimos. Falamos sobre o acidente apenas. O velho P. ficou calado.

Pela manhã partimos rumo ao norte, seguindo a linha da costa, porque esta era, segundo o ancião, a melhor rota para encontrarmos a civilização. Após algumas poucas horas de caminhada sob um sol escaldante e estranhamente grande no céu, percebemos que estávamos em algum lugar desconhecido. À nossa esquerda o mar bravio. Por todos os outros lados, apenas um deserto de terras vermelhas até onde a vista podia alcançar. O contramestre, homem de muitas viagens e conhecedor de muitas terras, desconhecia por completo aquelas paragens. P. resmungava apenas, de trás de sua longa barba grisalha, e, colocando a mão em pala, perscrutava com olhos ávidos o horizonte.

Por dois dias mantivemos a marcha. E nenhum sinal de vida humana. Nem ruínas antigas ou velhas construções. A partir de então, nossa água escasseou. F. não mais conseguiu apanhar peixes nas águas da praia. Nosso ritmo diminuiu. Nossas bocas secaram. Nossas pernas sentiram-se cansadas e nossas vistas turvas. Pensávamos que iríamos morrer.

Então, na noite gelada do terceiro dia, quando um vento frio soprava do mar, o velho e estranho P. chegou até nós com um punhal brilhante nas mãos. Olhou-nos com seus olhos azuis desbotados, fundos como um lago sombrio, e pediu que nós lhe cedêssemos os pulsos. Não iria nos matar, ele afirmava. Apenas uma tentativa para salvar nossas vidas. Relutamos. Ele insistiu. Relutamos ainda mais. Ele desistiu. Mas não conseguimos dormir. Estávamos desconfiados e assustados.

Caminhamos mais um dia com recursos escassos. Quando o sol se escondeu no ocidente, caímos por terra, sem forças, completamente esgotados, prontos para morrer. Então o velho nos fez sua oferta novamente. Havia um brilho assustador em seus olhos, uma ameaça sombria em seu cenho franzido e enrugado. Não sei se porque estávamos sozinhos com aquela face sinistra no meio do nada ou se porque não tínhamos mais esperanças… De qualquer forma, cedemos.

Ele então tirou muitas ervas de seu alforje e amassou-as com água do mar em um pequeno pilão, fazendo uma gosma verde de cheiro ácido. Depois, cortou nossos pulsos de leve e deixou o sangue escorrer por alguns instantes para dentro da mistura. Fechou nossas feridas com um curativo rápido e umas palavras – e assim que ele acabou de pronunciá-las, não sei se pelo efeito do curativo, não sei se por efeito daquela voz, não sei se por causa do cheiro nauseante da gosma verde, não mais senti dor. Daí, misturou o sangue na infusão e acrescentou o que me pareceu um pequeno caranguejo multicolorido, ainda vivo, e o amassou, sussurrando palavras em uma língua esquecida. Eu e o contramestre apenas olhávamos curiosos e desconfiados.

Após tudo pronto, ele, P., colocou um pouco da mistura gosmenta na mão e enfiou na boca, mastigando e engolindo rápido. Depois, passou a nós. Eu me lembro de ver o contramestre olhar para aquela nojeira e ter ânsia de vômitos. Na minha mão, via apenas algumas pernas de caranguejo saindo da massa amorfa e verde e ácida e mole. Confesso que quase vomitei. Mas meti a coisa na boca, dei umas duas mastigadas e engoli antes que o gosto azedo dominasse a minha vontade. Depois disso, sim, tive ânsias de vômito. Parecia que meu estômago se contorcia e queimava. Mas o velho não nos deixou vomitar. Se vomitássemos, tudo estaria perdido.

Passamos a noite, os três, mas P. menos, com terríveis dores no estômago e no intestino. Uma febre feroz dominou-nos o corpo. O vento, que já estava frio, soprava agora como as navalhas afiadas do mais cruel inverno. Nossas cabeças queimavam. Por horas sem fim a noite se estendeu. Quando a manhã surgiu do término dessa eternidade, caímos no sono.

Foi um sono breve, eu creio, porque quando acordamos o sol ainda não estava alto. Mas minha cabeça rodava como após uma bebedeira. Lembro-me de não conseguir ficar de pé. Vi o contramestre caindo duas ou três vezes. P. ancorava-se em um bordão tosco e improvisado. Mas estranhamente, apesar da visão turva e da tonteira, eu sentia uma estranha força e disposição. Passei a mão em meu cantil vazio e partimos. Depois daquele dia, toda noite, P. nos fazia consumir uma pouco mais daquela pequena infusão, às vezes regada a meu sangue, às vezes regado ao sangue do contramestre, outras, mais raras, ao dele próprio. A viagem, então, parecia mais um sonho apagado, uma ilusão, do que a tortura que tinha sido antes. Não sei quanto teria sofrido, ou sequer se teria suportado, caso não fosse a infusão daquele estranho cozinheiro.

Mas sei que suportei e continuei caminhando. Por quanto tempo é difícil dizer. Lembro-me – ou acho que me lembro – de ver o sol nascer e se pôr várias vezes. Lembro de ver colinas assomando aos poucos no que me parecia o nordeste, depois passando a leste, e finalmente sumindo no sul distante, às nossas costas. Lembro da lua crescente aparecendo no céu e dando lugar a uma imensa lua cheia a clarear vales e despenhadeiros nas bordas do mar. Lembro das ondas batendo nas pedras lá embaixo e correndo macia sobre a areia fina de praias compridas. De tudo isso eu me lembro, mas me lembro como se estivesse em um sonho apagado. E, verdadeiramente, tudo parecia mais um sonho do que a própria realidade.

Mas então a infusão acabou. As ervas do cozinheiro secaram. Nossas forças se esvaíram. Num último lance de força e vigor, empreendemos mais uma jornada. A jornada para o fim, para a morte certa. Caminhamos por toda a manhã. O sol estava mais quente do que o normal, a fome mais cruel, a sede mais devastadora, a dor mais aguda, as dores de cabeça mais fortes, o corpo mais febril. Caminhamos e caminhamos. Então, no horizonte, muito e muito à nossa frente, à direita, vimos uma mancha escura. No princípio era apenas uma mancha escura no deserto vermelho. Depois, tornou-se uma mancha escura em movimento, levantando uma imensa nuvem de poeira atrás de si.

Olhamo-nos incrédulos. Sim, todos viam. Uma caravana de mercadores, provavelmente. Tínhamos de alcançá-la. Corremos. Corremos. Mas nossa corrida deve ter parecido patética e inútil. Ainda assim nós corremos. Mas nada de alcançar a mancha, cada vez mais longe. Ou não? Mais longe. Lembro de ver o contramestre cair à minha frente na poeira vermelha. Lembro de ver o chão se aproximando e eu mesmo caindo. Lembro-me de olhar para frente e ver P. com seu bastão erguido para os céus. Ouvi sua voz rouca e forte. Depois o vi ajoelhado.

O que veio depois eu não sei explicar. Senti uma mão me erguendo da poeira com facilidade. Ouvi ganidos, estalos e o que pareciam rosnados guturais. Depois não vi mais nada. Quando finalmente consegui abrir os olhos, vi as tábuas sujas de um assoalho. Tudo parecia sacolejar e se mexer. Meu estômago e minha cabeça doíam. Minha vista estava embaçada como depois de um longo sono. Havia um zumbido alto. De rodas de madeira, talvez. Um cheiro ácido preenchia o ar. Vi pernas imensas, como troncos, se movendo. Mugidos. Um homem grande com uma lança comprida passou ao meu lado. Seus cabelos eram grossos e oleosos. Ele olhou para mim, mas seu rosto não era de uma pessoa. Era uma máscara de carne disforme, com dentes protuberantes. Ou não? Tudo estava confuso. Depois disso, senti os olhos pesados. Fechei-os e dormi.

Por quanto tempo dormi eu não sei. Quando acordei novamente, P. estava ao meu lado, sentado sobre o tablado em movimento. “Olhe! – ele me disse. E sua voz não era rouca e profunda, como antes, mas uma voz clara e leve, limpa como a luz da manhã. – Contemple o que há de mais belo para além das bordas do infinito.” Eu levantei os olhos. Mas minha cabeça rodopiava. Vi que estávamos descendo uma estrada larga, rumo a um vale. Lá no fundo, uma miríade de prédios e casas e coisas no meio da vastidão vermelha. Bandeirolas tremulantes em pináculos dourados. Cúpulas reluzindo a luz do sol. Eu queria ver, mas minha cabeça doía e rodava. Senti uma pontada na nuca. Novamente dormi.

Então, quando acordei novamente, já estava melhor. Estava em um pequeno quarto de madeira. Uma chuva grossa caía do lado de fora. Uma jovem senhora cuidava de mim. “Onde estou?” – perguntei a ela, quando a vi. “No sul de Nova Vhéria.” – ela me respondeu, prestativa. – “O senhor esteve muito doente. Dormiu por dias. Achei que o senhor não iria mais levantar.”

No sul de Nova Vhéria? Como eu tinha ido parar no extremo norte do mundo? Como, se nosso naufrágio tinha sido no leste distante? O que estava fazendo ali?

“Seus amigos deixaram algumas moedas para o senhor, mas disseram que não poderiam esperar mais. Eles tinham uma longa viagem para fazer até Costa Partida, pelo que compreendi.”

“Costa Partida. Foi de onde zarpamos. Tenho que voltar.”– Comentei comigo mesmo, e logo perguntei para a senhora que me acolhia: “Como eu vim parar aqui?” Ela me olhou confusa. “Seus amigos o trouxeram. Disseram que o barco onde os senhores estavam naufragou na costa do Pântano Escuro, na foz do Rio Grande. O senhor estava muito doente, mas eles conseguiram, por sorte, subir o rio com um mercador de carvão. O primeiro lugar que encontraram foi esta vila. Eu pude acolhê-los aqui e cuidei do senhor. Realmente, pensei que o senhor não iria suportar. A febre estava muito alta. E o senhor dizia coisas sem sentido.”

Não compreendi. Olhei para a senhora e perguntei várias vezes. Ela sempre me repetia a mesma história. Quando tinha me recuperado por completo, parti de volta para Costa Partida. Meu contratante estava falido. Todo o dinheiro que investira na jornada tinha sido perdido. Procurei nas docas pelo contramestre e pelo cozinheiro. O primeiro tinha partido em um navio para o sul. Nunca mais voltou. O velho, ninguém se lembrava de ver homem semelhante vagando por aquele porto. E eu, até hoje, não sei realmente o que aconteceu naquela estranha viagem.

Autor: Igor de Oliveira Costa

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