Mestrando no Deserto

Dark Sun vem aí em português no ano que vem. É o que a Devir anunciou recentemente, por conta da importância do cenário para o Player’s Handbook 3 (Livro do Jogador 3). Mas como é mestrar uma aventura ambientada em um deserto?

O artigo “Mestrando no Deserto”, do nosso velho amigo Haroudo Xavier, foi publicado em 4 de julho de 2003 e tem algumas boas dicas.

Confiram  a seguir.

Por Marcelo Telles
Coordenador da REDERPG

Mestrando no Deserto

Publicado em 04/07/2003  (3562 leituras)

Você os levou lá… Seja através de uma rota necessária para achar a cidade de Akadar, ou como sobreviventes de uma queda de avião comercial, ou como um espião britânico que precisa conversar com um Djinn numa poça sulfurosa… O problema agora é: o que diabos fazer com eles?

Nesse artigo não vou dar os dados sobre calor e umidade do deserto do Sahara (mais de 50º e menos de 14%), nem sobre os costumes dos Bedu da Jordânia (quando devolver uma xícara de café, se não quiser mais, balance-a levemente). A idéia é que, após ler esse texto, você possa ter uma idéia de como criar um ambiente plausível para seus jogadores, diferente da narrativa circular do tipo:

“Vocês estão no deserto. Ele é grande. Quente. Há enormes dunas de areia branca. Finas nuvens de areia se formam com o vento, que é ao mesmo tempo forte e suave. É engraçado, mas vocês não sentem sede, apenas o calor queimante do sol quando toca sua pele. O deserto é enorme, quente e vocês andam/correm/cavalgam/rodam por horas. Vocês vêem mais dunas e mais dunas, e mais dunas, e mais dunas…”

Não que isso não ocorra em outro tipos de deserto. Uma floresta por exemplo, é um local tão deserto quando o Sahara quando pensamos em como descrevê-lo. Aliás, “descrição” é a palavra chave, ou melhor, elementos que formam uma descrição. Voltando a floresta, nela temos uma enorme diversidade de plantas, vida animal, sons e diferentes acidentes geográficos que surgem. Na teoria é mais fácil de se descrever uma floresta, mas quando se para e pensa, e se você tiver visitado uma, quando se lembra como foi a experiência, o que mais se passa na cabeça do cara quando ele se viu dentro de uma floresta foi “onde diabos eu piso pára não ter de quebrar o pé”. Diferente do conceito popular, onças ou tigres não são assim tão abundantes e, em boa parte dos casos, os animais vão preferir lhe evitar que lhe atacar (a menos que você corra sorridente em direção a um elefante que está defendendo seu território…).

Enfim, para esse artigo vamos manter os desertos áridos e quentes, como o Sahara, o deserto de Gobi, etc. Descrever um deserto e o que se passa nele sem se tornar monótono em dois minutos não é fácil, para facilitar a vida você tem de pensar em elementos que destoem do cenário comum. Alguns itens que vêm à mente logo de cara são: animais, vegetação, tempo e outros seres (não vou colocar “humanos” para tentar manter isso genérico). Lógico, o uso desses elementos é relativo ao tipo de deserto e o clima dado a aventura.

Animais em um deserto árido tipicamente tem seu organismo adaptado a ele de forma a corservarem sua umidade. Camelos metabolizam sua gordura, roedores têm bolsões extras de líquido e nutrientes, e alguns lagartos chegam mesmo a excretar apenas cristais evitando desperdício. Tudo isso é interessante, mas quando se pensa um pouco mais sobre esses animais você nota a falta de um elemento importante para torná-los realmente interessantes: normalmente eles não são agressivos. Excetuando os animais venenosos, há pouca emoção no deserto. Não há grandes predadores, nem predadores de médio porte que andem em bando. Simplesmente não há comida para sustentar um animal pesado e carnívoro, ou um bando grande de carnívoros que não possa ser espantado facilmente por fogo. Lógico, um mestre criativo sempre pode vir com uma solução, como o grupo que acampa e descobre logo depois que insetos (alguns zilhões deles), estavam hibernando logo abaixo de onde eles puseram suas tendas e já lhes comeram um camelo/partes não metálicas de seus veículos/mascote do grupo, etc, e já os vem devorar… Mas talvez a melhor saída para uso de animais é torná-los peculiares e acentuar a beleza de sua adaptabilidade com o ambiente. Pode parecer tolo, mas isso tem haver com a natureza da história e com o que o mestre quer passar com ela. Animais sempre foram ótimas metáforas, e num ambiente no qual eles são uma vista tão rara (mesmo quando abundantes eles são em grande parte notívagos e pequenos), isso torna-se ainda mais especial.

A vegetação desértica é nula. Okay, eu acabei de mentir aqui. Há mais vegetação no deserto do que imaginamos. Os Bedu sabem disso e seu nomadismo se dá procurando áreas de pasto para seus animais. Mesmo chovendo apenas raramente, regiões desérticas tem tipicamente um solo muito fértil e a chuva dentro de pouco tempo pode transformar toda uma área antes coberta de areia numa região onde logo haverá pasto. De uma forma geral, a vegetação desértica é esparsa, baixa, sem folhas e tem um longo sistema de raízes. Muitas dessas plantas possuem sistemas de conservação de água e umidade, e não é tão longe da realidade a visão do cowboy perdido cortando um cacto para beber a água armazenada nele. Perto dos raros oásis a situação é um pouco diferente, havendo uma maior variedade de vegetação.

A escala de importância do tempo no deserto é algo que nos escapa. Afinal, uma coisa é decidir se o tempo vai estar nublado antes de ir a praia no domingo, outra é decidir se é possível atravessar uma faixa de terra de alguns quilômetros a pé sabendo que constantemente nela existem tempestades violentas. O maior perigo de uma tempestade de areia é morrer afogado nela. Continuar andando as vezes não é possível, e simplesmente deitar e esperar nem sempre é uma boa opção. Chuvas ocorrem raramente mais não devem ser esquecidas. Talvez o mais importante a respeito de clima é lembrar de que o deserto não tem uma temperatura e tempo uniformes, as noites podem ser muito frias (queimaduras de frio a noite não são incomuns em certos desertos), chuvas e ventos fortes ocorrem de forma inesperada.

Gente é um item complicado. Não só na vida real, no nosso cotidiano, mas também na ficção. Criar costumes, tipos físicos e modo de falar pode ser difícil, mas vai tornar uma aventura no deserto muito mais interessante. O único ponto importante para se manter em mente agora é: esse povo é realmente peculiar. Diferente de outras gentes, seja uma tribo de nômades ou uma comunidade vivendo próxima a um oásis, eles vivem num delicado equilíbrio no qual a segurança de todo o grupo está em jogo. As condições terríveis do seu ambiente tornam a busca por alimento e água muito mais crucial, e as relações humanas também mais extremas. Viver num grupo desses é como estar casado com cada membro, já que todos contam, todos importam e as relações sociais são sempre muito próximas. Isso tudo torna também delicada a forma como tratar com eles. Por outro lado, quando o primeiro contato não acaba nos primeiros cinco minutos, os jogadores podem ficar realmente surpresos. Esse tipo de gente costuma ser bastante sociável e aceitam a presença de estranhos que mostrem boas intenções com uma certa facilidade. Construir uma relação de amizade dos personagens dos jogadores com essa comunidade pode ser fonte de toda uma aventura ou campanha, e um verdadeiro prêmio para um mestre criativo que prefira roleplay.

Mestrar uma aventura que se passe num deserto pode ser bem divertida, a chave está apenas em descartar os estereótipos e planejar um pouco antes. Nem todo nômade é um assassino, no deserto não existe só areia, nem toda planta tem litros de água facilmente disponíveis e nem todo encontro precisa ser com dragões azuis. Seja original, surpreenda, e se deixe surpreender com a resposta dos jogadores diante do seu esforço. E antes que eu me esqueça: cuidado com camelos, eles cospem.

Haroudo Xavier
Equipe REDE RPG

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