Um grupo de figuras esquivas reúne-se em um galpão abandonado na periferia da Metrópole. Alguns deles possuem identidades públicas respeitáveis, outros não, mas há muito se conhecem e procuram, sem muito sucesso, cooperar ou, ao menos, conviver. Estes homens e mulheres são os pequenos Lordes do crime da cidade livre de Santuário. Como em uma família, há momentos de colaboração e também as escaramuças. Estas – bem mais freqüentes, diga-se a bem da verdade – os mantém a anos em posição de xeque em relação ao seu inimigo comum: o Conselho Luminar. Mas não mais. Esta noite está para mudar tudo.
Uma pequena figura parece surgir das sombras: um homem muito idoso, de barbas e cabelos grisalhos e postura encurvada. Devido aos movimentos suaves do ancião seu manto deixa escapar, esporadicamente, um brilho prateado que parece emanar de sua mão direita. Gaius mão-de-prata. Todos já o viram antes e conhecem sua reputação como um dos maiores criminosos de todos os tempos – além de um mago competente. Ao seu lado alguém que eles veem pela primeira vez: um homem enorme, em armadura, oculto por um capuz. Um dos Lordes do Crime faz menção de falar, mas é interrompido por um gesto de Gaius, que expõe o plano que o levou a convocar os lordes do crime:
“Quando era jovem como vocês e tão pretensioso quanto exerci nossa nobre arte em praticamente todos os reinos deste lado do continente antes de vir parar nesta terra esquecida pelos deuses mortos. Colecionei riquezas, que dissipei, e inimigos, que não me esqueceram, e aqui em Santuário estou fora de seu alcance – por hora, pelo menos. Aqui há uma oportunidade de ouro para cavalheiros e damas com os seus talentos – e quando eu falar da sofisticação com que outros reinos impõem seu poder utilizando como desculpa combater os que agem protegidos pelos mantos das sombras depois que Ashkar-Mithraelis parte para seu repouso, isso deverá ficar bem claro.”
“Em toda a Aldar o suplício e o estigma são o padrão de punição e os Principados não são exceção, embora aqui, e em especial nessa cidade, sejam aplicadas apenas nos casos mais graves e para os reincidentes. Em geral, punguistas levam uma sova para depois serem liberados. Em outros reinos são expostos no cadafalso para ojeriza pública ou tem gravado a ferro a marca de seu crime – embora sejam cruéis estas penas não chegam a desestabilizar o “Manto das Sombras”: alguém com a marca “ladrão” não tem outra opção do que continuar a sê-lo – quem lhe confiaria outra tarefa? Assassinos são mortos em espetáculos públicos de tortura para ilustrar a todos qual o destino dos que cometem crimes.”
“Esta exibição dos condenados como forma de reafirmação do poder soberano já foi muito comum no Império Melkhar, mas recentemente, principalmente sob o reinado de Nalazask, este tipo de punição tem se tornado cada vez menos frequente. Seus arautos alardeiam a misericórdia do imperador-deus que ao invés de matar e marcar prefere dar utilidade às vidas sem sentido dos criminosos enviando-os a prisões “onde o trabalho em prol do imperador irá despertar-lhes o sentimento de lealdade ao império sufocado por suas motivações vis” e as pessoas simplesmente desaparecem. Não se deixem enganar. Pelo menor dos crimes um ladrão jovem e tolo é enviado para os campos de trabalho na Ferida. E acreditem-me, nunca mais se ouve falar dele. É preciso admirar a eficiência cruel deste reino, tido como a máquina mais perfeita do deus Melkhar, que resolve ao mesmo tempo dois problemas: o que fazer com multidões de miseráveis que perderam sua utilidade nos campos em razão da tecnomagia e onde conseguir mão-de-obra para as mortais minas de Metal Divino.”
“Outra pena comum é o banimento. Entre os humanos ela tem maior aplicação a nobres que caíram em desgraça. Anões costumam banir seus pares que tenham cometidos crimes particularmente desonrosos e contrários ao Karnadom – em particular a covardia em batalha. Se o caso de covardia for considerado muito grave, a punição é ainda mais severa: o anão tem sua barba removida por magia e um dos efeitos é que ela nunca mais cresce. A vergonha é tamanha – para eles isto equivale a uma castração – que muitos terminam por se matar, embora eu tenha certeza que todos vocês já tenham ouvido a anedota do anão de barba postiça que a perde em uma briga de taverna!”
“Bem conhecido é o prazer com que os bruxos Kundrav utilizam-se da magia para punir aqueles que lhes desagradam! Mas vou contar sobre uma punição que testemunhei uma única vez, e que é guardada somente para a alta traição: um dos reis-bruxos foi exilado para o plano infernal de Karnax, para ficar à mercê das forças demoníacas daquele plano. É claro que os Kundrav escravizam demônios (o que alimenta um rancor sem equivalente dos filhos do andarilho rubro pelos servos de Ur-Aktar), mas entre esses há príncipes de extremo poder e em Karnax eles estão em seu elemento. Ainda assim, o rei-bruxo banido jurou retornar para vingar-se.”
“Os elfos e outros seres de Onires também se utilizam muito da magia para punir criminosos, assim como Deydhor – este reino talvez o faça por influência das cortes oníricas. Mas para as fadas isto tem mais configuração de piada do que punição efetivamente! É muito comum a transmorfiguração em animais ou objetos, como transformar um ladrão em furão ou rato. Em Deydhor, uma das Casas certa vez transformou um criminoso em raposa e o utilizou para uma caça esportiva! Tive um companheiro de aventuras que até hoje está aprisionado em um carvalho. Foi lá que caí em um jogo dos duendes e tive a mão cristalizada e inutilizada – como podem ver – o que deu o meu epíteto e originou o meu interesse pelas artes místicas. Nunca mais voltarei lá e recomendo a vocês não visitarem esse reino!”
“Entre os elfos o banimento também é muito comum. Desconfie do próximo meio-elfo lunático que alegue estar peregrinando em Daishim!”
“Enfim, vocês pensam que a tolerância de Santuário os serve bem e tentam conduzir seus negócios lutando por migalhas. Eu lhes digo que prosperaremos com o medo! Iremos cometer crimes horrendos como bestas tomadas pela Escuridão. Faremos os camponeses temerem o cair da noite por nossa causa. Diabos, irei até mesmo enviar bardos às tavernas e praças para alardear novas sobre crueldades e crimes sem sentido para inflamar os ânimos! Vocês me perguntam em que isto servirá aos nossos propósitos? Pois se aprendi alguma coisa com os anos viajando por Aldar é como o medo governa todos os assuntos dos homens. Os reinos que enumerei exercem seu poder baseados nessa premissa. Abre-se mão de qualquer coisa pela garantia de uma vida pacata – isto é verdade para camponeses, mas também para nobres e mercadores! Em geral quanto mais se tem mais se teme.”
“Assim, quando o terror tomar conta de cada alma desta cidade, seus habitantes clamarão contra o Conselho e tomarão sua benevolência por ineficiência e apatia! Nesse momento surgirá um salvador: um homem carismático e que não terá medo de ser duro. Ele acumulará todos os poderes do Conselho e imporá novas leis que restringirão algumas liberdades – tudo, claro, em nome da segurança de Santuário. E este homem – neste momento Gaius olha com um sorriso para o guerreiro encapuzado ao seu lado – será um dos nossos.”
Conto por Max Frangillo
***