Creio que nunca comentei que adoro cinema. E que um dos meus diretores favoritos é o M. Night Shyamalan, um diretor indiano que vive nos EUA, responsável por conduzir filmes de qualidade indiscutível (como O Sexto Sentido) e outros causadores de boas discussões, como A Vila. O ponto é que Shyamalan consegue de forma sutil, lidar com sentimentos polêmicos, como o medo, a fé, o desejo de vingança, além de sempre enquadrar alguma crítica social em seus roteiros. Os filmes de Shyamalan podem ser do tipo ame-ou-odeie, porém você nunca sai indiferente ao que acabou de assistir. Eles criam polêmica, geram discussão, promovem o pensamento sobre as situações que retratam. São como peças de um quebra-cabeça, cujo conjunto representa um pedaço de nossa vivência.
Existem jogos de RPG que são exatamente iguais aos filmes discutidos acima: por mais exóticos que aparentam, fornecem conteúdo interessante; por mais defeitos que apresentem, geram ótimas aventuras; por mais criticados que sejam, acabam discutidos após a sessão de jogo, com aquele apelo de “quero mais”. São os jogos ame-ou-odeie a lá M. Night Shyamalan, que você fica curioso pra jogar e quando consegue, a sua opinião é totalmente diferente da do seu colega de mesa.
Puppetland é um jogo que se enquadra nesta categoria, sendo mais um exemplar da tendência New Style de jogos, assim como Don’t Rest Your Head e Power Kill. Outro ponto interessante é que Puppetland é um RPG “indie”, ou seja, criado de forma independente e sem compromisso, ocupando poucas páginas de papel e sendo distribuído gratuitamente via Internet.
O Jogo
A premissa básica deste RPG é bem interessante: o Criador, triste com a destruição que uma guerra provocada pela Humanidade estava causando, criou um mundo onde os fantoches da Terra poderiam viver em paz, sem cordões e mãos para controlá-los. Assim, em uma bela manhã todos os fantoches desapareceram: eles foram para Puppetland. Lá o Criador era o único ser feito de carne, vivendo em harmonia com suas adoradas criações.
Tudo corria bem, até que surgiu o Punch, um ardiloso fantoche. Certa noite, ele invadiu a casa do Criador e o assassinou enquanto dormia. Como prova de sua crueldade, Punch confeccionou uma máscara com a pela do Criador, e usou a carne de sua vítima para fazer seis fantoches, os quais ele chama de seus Garotos. Junto com sua trupe, Punch reclamou a soberania sobre toda a Puppetland, fazendo dos outros fantoches seus escravos, sempre construindo novas casas e brinquedos para ele e seus seis amigos.
Contudo, nem toda esperança está perdida. Alguns fantoches escaparam das garras de Punch e fundaram uma nova vila, logo além do Lago de Leite e Biscoitos. Esta vila livre é comandada por Judy, uma ex-amante de Punch. Ela aprisionou a última lágrima do Criador em um dedal de prata, no momento de sua morte. Com esta lágrima, Judy afirma ser possível reviver o Criador e acabar com o governo de horrores de Punch.
Aqui entram os jogadores (ou atores, como são chamados no livro), comandando uma equipe de fantoches rebeldes, com o objetivo de derrotar o louco Punch e trazer o Criador de volta. Gostou ou odiou?
O Sistema
Puppetland possui apenas 3 regras. Isso mesmo. E acredite: são suficientes para ditar o jogo. Abaixo elas são brevemente comentadas:
Primeira Regra – “Uma hora é dourada, mas não é uma hora”.
Não entendeu? Ótimo! As aventuras de Puppetland são chamadas de Conto, e devem ter a precisa duração de 1 hora de jogo, controlada no relógio pelo Mestre. Os fantoches são criaturas mágicas, e só conseguem se movimentar livremente e realizar ações durante 1 hora. Após este período, eles caem no sono e despertam na manhã seguinte em suas camas, onde todos os Contos têm início, seguros e ilesos. Por isso que “uma hora é dourada”.
Porém, isto não significa que todas as jornadas só duram esta quantidade de tempo. Se o fantoche disser “Eu navego no Lago por 4 dias”, só terão se passado poucos segundos no relógio. O tempo flui sob a perspectiva que o Conto é narrado, e não baseado no tempo em que as ações duram. “Uma hora não é uma hora” afinal.
Segunda Regra – “O que você diz é o que você diz”.
Este é um dos aspectos mais polêmicos de Puppetland. Durante o jogo, é imperativo que tudo que os atores disserem, os seus fantoches também terão dito. Qualquer conversa paralela deve ser realizada com os atores de pé, o que é altamente desencorajado. O Mestre pode dirigir questões aos atores, que devem ser respondidas com um simples aceno de sim e não.
De forma análoga, toda ação pretendida deve ser expressa como um diálogo falado pelo fantoche. Assim, tanto o ator quanto o GM (ou Puppet Master) devem considerar que cada palavra dita é parte de uma história escrita, ao invés de uma conversa comum durante o jogo. Tendo em vista o limite de tempo imposto para a duração do Conto, a utilização desta Segunda Regra é bem vinda.
Terceira Regra – “O Conto cresce com a narrativa, e está sendo narrado para alguém que não está presente”.
Outro ponto que dá ênfase à narrativa do jogo. Pode parecer confuso, mas é basicamente uma extensão da Segunda Regra: além de os participantes apenas dizerem o que os seus fantoches diriam, tais frases devem ser executadas como se houvesse um leitor invisível lendo toda a história.
Assim, um péssimo exemplo de frase seria “Vamos para a porta dos fundos, e rápido!!” ao invés de “Corra! Corra para a porta dos fundos! Precisamos escapar destes bandidos!”. Tudo em nome da narrativa.
Com o exposto acima, pode-se perceber também que não existem atributos, estatísticas ou rolamentos de espécie alguma.
O próximo ponto do sistema é dedicado à criação dos personagens, ou fantoches. Novamente a simplicidade é evidente: existem quatro tipos de fantoches que podem ser escolhidos, que são os fantoches de dedo, de mão, de sombra e as marionetes. Cada um deles possui algumas qualidades e defeitos, que são expressos através de simples palavras que representam o que eles são (altos, leves, rápidos, etc), o que eles podem fazer (chutar, arremessar, nadar, etc) e o que não podem fazer. Desta forma, você tem um panorama geral do que o seu fantoche é capaz no mundo de Puppetland.
Todas as informações referentes ao seu fantoche são registradas em uma simples folha de papel, onde deve ser realizado um desenho do mesmo em escala natural, não importando os seus dotes artísticos. Este desenho é utilizado para uma forma inusitada de controle de pontos de vida: o quadro com a figura do boneco deve ser dividido em 16 partes, formando um pequeno quebra-cabeça. Toda vez que acontecerem certas coisas durante o jogo, o ator deve preencher uma das peças, indicando que uma parte vital do fantoche se perdeu. Esta ação deve ser executada quando (1) o fantoche faz algo que ele não estava capacitado para fazer (que o jogador estipulou durante a criação do personagem) ou (2) algo muito ruim acontece (ter uma perna esmagada, por exemplo). Quando todas as peças do quebra-cabeça são preenchidas, na próxima vez que o Conto acabar, o fantoche não acordará. Ele está morto e não poderá ser mais utilizado.
O próximo capítulo é dedicado a Judy, Punch e seus Garotos, com descrições para todos eles. Também existe um breve comentário sobre a criação de novos tipos de fantoches.
O Livro
Não há muito que dizer sobre o livro básico de Puppetland, pois o mesmo é distribuído gratuitamente em HTML ou .doc de 10 páginas, contendo apenas texto corrido, sem tabelas ou figuras.
O texto é claro e conciso, distribuído na ordem em que foi resenhado aqui: ambientação, regras, criação de fantoches, como jogar e NPCs. Nas páginas finais ainda podemos encontrar um curioso FAQ e um excelente “últimas palavras” do autor, relacionando os acontecimentos em Puppetland com os conflitos entre crianças e adultos, fechando com uma questão existencial que deverá ser respondida pelo GM antes de acabar o jogo.
No frigir dos ovos, Puppetland é um jogo interessante, com uma temática exótica e proposta de roleplay no mínimo inusitada. Creio que o sucesso de suas aventuras estará condicionado ao estilo de jogo que o grupo está acostumado ou disposto a encarar. Ferramentas não faltam neste pequeno livreto de 10 páginas, pelo menos propostas de algo bem diferente e excêntrico.
Durante o curto playtest que realizei, pude perceber que as Regras acabam se entrelaçando, fazendo com que o conjunto todo fique harmonioso. Problemas existem, pois nem todos os jogadores se sentem seguros ou acostumados o suficiente para aplicar a Terceira Regra. Além disso, o grupo deve estar familiarizado com sistemas narrativos, sem se apoiar em regras e dados para resolver situações.
Vale ressaltar que esta resenha foi executada a partir da versão gratuita de Puppetland (disponível no site do autor). Atualmente existe uma versão impressa, distribuída pela britânica Hogshead, oferecida juntamente com outra obra surreal de John Tynes, o Powerkill. Pode ser adquirido por US$ 6,95 + frete. Este livro impresso é cerca de 30% maior do que a versão gratuita, apresentando mais dicas para o Mestre e descrições sobre a vida e locais de Puppetland. Uma boa pedida!
Depois de discutir o final de A Vila com seus amigos, prepare-se para boas conversas sobre fantoches, Lagos de Leite e outras coisas ao final de sua sessão de jogo, pois com certeza absoluta existirão pessoas que o amarão e outras que odiarão. Afinal, qual é a graça se todos tiverem a mesma opinião?
Bem, acho melhor encerrar por aqui, pois esta resenha já está com 40% do tamanho da obra analisada…
E tente achar a peça faltante neste quebra-cabeça.
Notas (de 1 a 6)
Layout/Arte: 1 (é apenas um documento de Word!)
Texto: 5 (simples, claro e funcional)
Conteúdo: 5 (simples, claro e original)
Nota Final: 4
Ficha Técnica:
Puppetland – A storytelling game with strings in a grim world of make-believe.
Por John Tynes, 10 pgs em .doc – 1996
http://johntynes.com/revland2000/rl_puppetland.html
http://www.hogshead.demon.co.uk/index.htm
Dados da publicação original
Por Clayton Mamedes
Republicado em 2/01/2012
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