Para entendermos a Idade Média como muitos gostam em seus cenários de fantasia, temos que entender o que aconteceu para chegarmos a alguns dos maiores eventos desse período. Depois que li o artigo do Tzimisce sobre campanhas de invasão algumas semanas atrás, percebi que esse artigo seria perfeito para se encaixar aqui. Como já disse várias vezes, não há nade melhor do que se basear na realidade para montar uma história ou campanha realista!
Muito bem, então vamos entender o período que muitos historiadores chamam de Idade das Trevas, um período da Idade Média meio nebuloso, entre o fim da Idade Antiga e o que se conhece como Idade Média tradicional e o porquê desse período ser tão importante para a Idade Média clássica (e seus cenários de fantasia).
No final de sua vida, o Império Romano estava dividido em dois, um Ocidental, com capital em Roma e um Oriental, com capital em Constantinopla. Isso não era tão novidade, pois já havia acontecido antes mais de uma vez. Mas a verdade era que, dessa vez, uma série de eventos, entre eles uma série de invasões bárbaras no lado europeu do império, haviam enfraquecido enormemente o poder de Roma. Com o tempo, o Império Romano Ocidental caiu e se partiu, dividido entre povos bárbaros e quem fosse capaz de tomar o poder por força de armas. O empobrecimento e decadência do Ocidente, mais o efeito do rival Império Persa, causaram problemas ao Oriente. Mercadores e artesãos nas províncias do norte da África viam-se sem onde escoar seus produtos. A Arábia fechava-se para o comércio. Constantinopla, em sua posição entre o Oriente Médio e a Europa, tornava-se um centro importante para o comércio, e as políticas do Imperador Constantino faziam muito para dar força a cidade, logo suplantando o poder anteriormente mantido por Alexandria e Antioquia.
O problema não permanecia sendo apenas econômico e político, mas seguia para o religioso. O Império Romano havia crescido em grande parte porque seu vasto panteão de deuses facilmente assimilava os deuses dos povos conquistados. Era fácil para um povo recém-dominado continuar suas crenças, vez ou outra alterando levemente sua mitologia para adaptar-se ao panteão romano. Quando Constantino tomou o cristianismo como religião oficial, lentamente os cultos pagãos foram sofrendo na onda de choque. Além disso, o próprio cristianismo via-se dividido em correntes diferentes. Naquele período, discussões teológicas eram parte da vida do homem comum. Além dessas facções descontentes, um outro grupo religioso opunha-se ao poder imperial. Os judeus, submetidos a restrições e muitas vezes vítimas de levantes locais, utilizavam-se de toda a oportunidade e condições garantidas por suas conexões e recursos para prejudicar o governo imperial.
Uma série de governos violentos e mal-sucedidos ao longo do século VI e VII levou o Império para uma situação econômica e politicamente perigosa. Os homens do império, ortodoxos, eram minoria dentre as facções religiosas descontentes. Em 602, um centurião de nome Focas tornou-se imperador e fez um governo terrível e incompetente. Levantes e rebeliões ocorreram em todo o território por conta de facções políticas e religiosas opositoras. Em um evento, Focas enviou um exército para massacrar um levante contra os ortodoxos, com o apoio dos judeus. Dois anos mais tarde, foram os judeus que levantaram-se em revolta contra os ortodoxos.
Focas foi deposto em 610 por um nobre de nome Heráclio. Neste mesmo ano, o rei persa Corsoe I iniciou uma campanha de invasão e desmembramento do enfraquecido Império. A guerra durou 19 anos e custou ao império grande parte de suas províncias no Oriente. Igrejas eram queimadas, populações massacradas. Em 614, os persas chegaram a Jerusalém. Com a ajuda de judeus dentro da cidade, invadiram e massacraram todos os cristãos, colocando fogo nas igrejas. Relatos dizem que 60 mil cristãos foram mortos e mais de 35 mil foram levados como escravos. Relíquias sagradas do cristianismo foram capturadas e levadas pelos persas. Alguns anos mais tarde, os persas tomaram o Egito. Ao norte, seus exércitos chegavam a Constantinopla.
Aqui começa o que muitos historiadores tratam como uma verdadeira primeira cruzada, uma proto-cruzada, pode se dizer. O Imperador Heráclio, considerado por muitos com o primeiro cruzado, finalmente tomou a ofensiva em 622, jurando pelo império e por Deus, recuperar as relíquias sagradas. Cinco anos mais tarde, havia retomado todo seu território e invadido o Império Persa. Em 628, o Rei Corsoe foi morto e seu sucessor clamou por paz. As relíquias sagradas, como a Santa Cruz, foram recuperadas e devolvidas a Jerusalém.
Mas Heráclio viu-se falido. Não conseguira dos tesouros de suas conquistas sequer o suficiente para reparar os danos causados na longa guerra. Nem mesmo os persas tinham os recursos necessários restando após tão longa e terrível guerra. O imperador viu-se obrigado a elevar impostos. Seguiu para uma série de ações religiosas que desagradaram a muitos. Além de tentar forçar sua nova facção da religião cristã aos seus súditos e instaurar o monoteísmo como obrigatório, tomou medidas impopulares, como a ordem de que todo judeu recém-nascido deveria ser batizado (supostamente tanto por saber o papel dos judeus na invasão de Jerusalém quanto devido a uma lenda que falava sobre um povo que derrubaria o Império).
Enquanto isso, na Arábia, algo de muito importante acontecia.
No início do século VII, a Arábia era povoada por inúmeras tribos independentes e indisciplinadas, tanto nômades como sedentárias, vivendo como agricultores ou mercadores. Eram idólatras. Isto é, cada povo ou grupo venerava um ídolo específico. Missionários cristãos, judeus e zoroastras já haviam entrado na região e mesmo obtido alguns conversos. O idolatrismo estava em decadência.
Foi neste cenário que surge Maomé. Um mercador árabe, viajara por todo o mundo conhecido e estudado várias religiões. Sentia-se particularmente atraído pelo cristianismo, mas via a idéia da Santa Trindade como contraditória ao pensamento de um só deus. Desenvolvera em torno de si uma nova filosofia, adaptada ao pensamento árabe e seus próprios conceitos. Foi um gênio com incríveis habilidades políticas que, em uma década, passou de um mercador seguido por família e amigos para se tornar senhor da Arábia, líder de vastos exércitos prontos para conquistar o mundo. Em 632, quando morreu, deixou um legado que até hoje afeta o mundo. Seu sucesso baseava-se em uma doutrina rígida e uma religião simplificada. “Ao contrário do cristianismo, que pregava uma paz que nunca era atingida,” diz o historiador Steven Ruciman, “o islã vinha, sem remorso, de espada em punho”.
O exército islâmico expandiu-se sob o domínio do sucessor de Maomé, Abu Bakr. Expulsou os persas de Barein enquanto invadia o território do Império Romano do Oriente. Logo chegaram à Palestina e a Gaza. Os cidadãos das cidades capturadas eram bem tratados, enquanto os soldados capturados eram executados.
Em 634, Abu Bakr foi sucedido por Omar. Nesta época, o Imperador Heráclio percebeu que deveria levar a sério as invasões árabes. Mas estava em uma situação complicada. Tivera de debandar regimentos inteiros devido à falta de dinheiro e a população não se mostrava interessada em alistar-se no exército. Era como uma pesada onda de pessimismo pós-guerra por todo o Império.
Heráclio enviou seu irmão, Teodoro, com um exército para recuperar a Palestina. Foi derrotado em uma batalha decisiva ao sul de Jerusalém. Os árabes continuaram suas conquistas, seguindo pelas rotas de comércio. Seguiram até Damasco, na Síria. Cidades inteiras rendiam-se sem luta.
Alarmado, o Imperador enviou dois exércitos contra os árabes. Um era formados por tropas armênias, lideradas por seu príncipe Vahan, apoiada por um grande número de árabes cristãos. O outro era formado de tropas mistas de vários cantos do Império e estava sob o comando de Teodoro Tritírio. Ao saber da aproximação dos exércitos, os muçulmanos recuaram, deixando Damasco e seguindo para o Rio Jordão. A batalha finalmente se deu em 20 de agosto de 636, em meio a uma tempestade de areia. Nela, o líder dos árabes cristãos e 12 mil de seus homens traíram Tritírio e aliaram-se aos muçulmanos. Além de odiarem Heráclio (não seguiam a mesma facção cristã do Imperador), seu soldo estava muito atrasado. Tritírio e Vahan foram mortos junto a quase todos os seus homens. Era o fim da linha de defesa do Império naquela região. Palestina e Síria estavam entregues aos muçulmanos.
Heráclio estava em Antioquia quando soube do ocorrido. Desesperado, acreditava que aquilo era uma punição de Deus. Embarcou em um navio para Constantinopla, chorando ao abandonar a costa.
Os exércitos árabes devastaram o país com uma velocidade fenomenal. Antioquia, a capital da província, caiu em 638. Cristãos hereges e judeus aliaram-se aos muçulmanos. Cidades inteiras renderam-se sem luta. Apenas as duas maiores cidades palestinas, Jerusalém e Cesaréia, resistiram, assim como duas fortalezas na fronteira persa, Pela e Dara. As relíquias sagradas foram removidas de Jerusalém e enviadas à noite para Constantinopla. Jerusalém suportou o cerco por um ano. Cesaréia e Dara até 639. Todo o país estava sob o controle muçulmano.
Enquanto isso, do outro lado, a Pérsia havia sido destruída. Os árabes logo dominaram o Iraque e o Irã. O rei persa fugiu para o Curasão, onde sobreviveu até 651, isolado.
Em 639, o general muçulmano ‘Amr invadiu o Egito. Em poucos meses o país, até então largado a um governo caótico, caiu nas mãos dos árabes. Os exércitos romanos lutaram bravamente, até perceberem que não teriam como resistir. Recuaram para Alexandria. Um tratado era para ser firmado para render a cidade. Enquanto isso, Constantinopla caia em caos. Heráclio morrera e sua viúva tentava em vão controlar o Império. Foi derrubada em um golpe. O novo governo ignorava o pacto de rendição e pretendia defender Alexandria. A cidade veio a cair dois anos depois, em 642.
Dois anos mais tarde, aproveitando uma brecha, Constantinopla enviou um exército pelo mar para Alexandria. Retomaram a cidade e marcharam na direção da capital fundada por ‘Amr, onde enfrentaram o general árabe. O mais surpreendente era que a população cristã não parecia se empenhar em retornar o território ao Império Romano. Desacreditado, o general romano abandonou Alexandria e retornou à Constantinopla. O patriarca de Alexandria, de uma facção oposta ao do Império, entregou a cidade de volta à ‘Amr.
Em 700, a África romana estaria nas mãos dos árabes. Onze anos depois, a Espanha seria tomada. No ano de 717, o território árabe estendia-se dos Pirineus à Índia Central e seus guerreiros atacavam as muralhas de Constantinopla…
Por João Marcelo Beraldo
Autor de O Véu da Verdade
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