Com quantas dimensões se faz uma canoa?
Durante uma aventura de RPG, a realidade experimentada pelos personagens no universo de jogo pode ser comparada com um relógio, onde a magia cumpre certamente o papel das engrenagens: embora todos os personagens sejam capazes de ver o movimento dos ponteiros, apenas alguns são capazes de explica-lo e menos ainda sabem descrever o que os impulsiona. Isso, porque todos os habitantes de uma terra imaginária devem saber o que ocorre com a natureza ao seu redor, mas apenas aqueles com aptidão mágica conseguem explicar o funcionamento das leis da natureza. Algo muito similar ocorrem em nossa realidade, onde as leis da física (que descrevem o funcionamento das leis da natureza) são conhecidas e dominadas por poucos. Muito embora possamos descrever de maneira bem aproximada o funcionamento das coisas em nosso dia-a-dia, apenas uma pequena minoria (os físicos) é capaz de descrever com profundidade as leis da natureza. Partindo desta analogia, percebemos que não é fácil falar sobre magia e física, mas a dificuldade não está (como somos levados a pensar no primeiro momento) na questão de que magia só existe no jogo enquanto a física é real (mas se faz presente no jogo imaginário). A grande dificuldade está em discernir as semelhanças entre física e magia no universo de jogo – que são bem maiores do que você imagina!
Até agora, falamos sobre a interpretação burocrática das regras (que fazem parecer que a existência da magia ignora as leis físicas nos jogos), de concepção filosófica do conceito de magia e realidade (o que é “magia”, afinal?), mas o que isso tem a ver com física é algo que fica um pouco vago. Na verdade, após analisar os conceitos, vemos que utilizar a magia em um universo de jogo tem muito mais a ver com a manipulação de probabilidades do que com assassinar as leis da física, como muitos mestres, autores e jogadores de RPG costumam pensar. E para finalmente entender como isso ocorre, basta fazer como já diziam nos velhos desenhos animados da Hanna-Barbera: sigam a bolinha branca e aprendam a canção…
Em que mundo você vive?
Tudo aquilo o que nos cerca (casas, carros, ar, luz), tudo o que existe no universo, é formado pela união de um número incontável de partículas subatômicas (bom, as partículas formam os átomos e os átomos formam tudo o resto. Então, pelo número de átomos necessários para formar um tijolo, você já pode ter uma idéia do número aparentemente infinito de partículas contidas nesse tijolo).
Vivemos em um mundo formado por partículas e experimentamos os efeitos das interações entre elas em nosso cotidiano. É a partir dessas experiências que formamos nosso conceito de realidade e descrevemos o funcionamento da natureza que nos cerca. Porém, da mesma maneira que um aldeão sem aptidão mágica é incapaz de explicar a invocação de uma bola de fogo, a maioria das pessoas também não sabe dizer por que o mundo é como é. E mesmo aquilo que é tido como certo e imutável, pode muito bem deixar de fazer o menor sentido de uma hora para outra – quer seja pela morte de um deus em uma aventura, quer seja pela descoberta de uma nova teoria física em nosso mundo.
Isso ocorre porque a física teórica é uma parte da ciência essencialmente imaginativa (muito similar ao RPG), onde novas teorias podem sugerir que temas conhecidos e até então tidos como certos ou imutáveis, careçam de uma revisão “conceitual”. Sabem aquela história de “você precisa rever seus valores”, que vemos em comerciais de televisão? É bem por aí. Por exemplo, todos nós estamos habituados a vida em 4 dimensões: três delas visíveis ao nosso redor (para cima/baixo, para a direita/esquerda e para a frente/trás), enquanto a quarta dimensão (o tempo) complementa as outras três. Juntas, essas dimensões formam o que nós, físicos, chamamos de espaço-tempo, que é aonde vivemos. Saber disso é muito fácil! Entender isso, mais fácil ainda! Assim como é fácil alguém afirmar que vivemos em um universo quadridimensional. Ninguém, aparentemente, discutiria com você, se dissesse isso (estou aqui ignorando místicos e opiniões religiosas, ok?); uma afirmação que parece fazer muito sentido, mas é uma pena que não seja inteiramente verdadeira. E vou mostrar por quê.
Quanto menor, melhor!
Você pode ter entendido a existência de partículas que compõe o núcleo atômico como tijolos compõe uma parede. É uma analogia bastante comum, mas bastante errada também: partículas não são grãos isolados de matéria (como tijolos ou grãos de areia), mas padrões de probabilidade em uma cadeia inseparável, como mostra a teoria quântica.
Na teoria quântica, as partículas são apresentadas como pacotes de ondas e o comprimento de um pacote de ondas representa a incerteza na localização dessa partícula. Se desejarmos localizar de maneira mais precisa uma partícula (ou seja, confina-la a uma região menor do espaço) teremos de comprimir seu pacote de ondas nessa região. Só que, ao fazermos isso, afetamos o comprimento de onda do pacote, e conseqüentemente, a velocidade da partícula; que se deslocará nesse espaço e, quanto mais confinada, tanto mais rapidamente se deslocará. Então, as partículas não devem ser representadas como objetos tridimensionais estáticos, como bolas de bilhar ou grãos de areia, mas como entidades quadridimensionais do espaço-tempo (Já ouviu falar no princípio da incerteza de Heisenberg?).
Ou não. Afinal, como eu disse lá em cima, uma das dimensões em que vivemos pode muito bem não existir. Na verdade, o próprio conceito de espaço-tempo quadridimensional corre o risco de ser rebaixado para tridimensional: ao que parece, uma das três dimensões do espaço pode ser uma espécie de ilusão, o que levaria o universo a se comportar como um holograma (um holograma é um objeto bidimensional, que sob condições ideais de iluminação produz uma imagem tridimensional).
Em um holograma, todas as informações que compõe o objeto tridimensional estão contidas no objeto bidimensional de origem. E olha que descrever o universo desta maneira não é uma simples analogia: experiências com partículas em altas energias já fornecem dicas de que se trata de uma teoria válida, o que oferece um novo ponto de partida para que se possa construir uma teoria da gravidade que respeite os princípios da mecânica quântica – algo que muitos cientistas de hoje consideram tão valioso quanto a Arca da Aliança para Indiana Jones. E isso porque a teoria da gravidade de Sir Isaac Newton (aquela que você aprende na escola e que faz parte da chamada física clássica) foi substituída no início do século XX pela teoria da relatividade geral de Albert Einstein – que também é considerada clássica, por não seguir os princípios da mecânica quântica (na teoria de Einstein, os objetos possuem posição e velocidade definidas, como os planetas do sistema solar, por exemplo).
A física moderna não representa a matéria como passiva e inerte, mas em contínuo movimento de dança e vibração, cujos padrões rítmicos são determinados pelas estruturas moleculares, atômicas e nucleares. A teoria da relatividade demonstra que a atividade da matéria é a essência de sua existência. A existência da matéria e sua atividade não podem ser separadas, são aspectos diferentes de uma mesma realidade espaço-temporal – exatamente a mesma forma como os místicos orientais encaram o mundo material.
Agora, pense um pouco em como os diferentes sistemas de regras apresentam a magia: sempre como uma explicação para a intrincada rede de causas/efeitos que é a natureza do universo de jogo. A magia é a responsável pelo movimento dos ponteiros, ao mesmo tempo que representa a cadeia de ligações entre os diversos eventos possíveis. É como se o mago fosse capaz de manipular as amarras da realidade, para poder obter os efeitos que deseja.
Na teoria quântica, as partículas também são ondas, o que faz com que se comportem de maneira peculiar (sempre que uma partícula subatômica é confinada a uma pequena região do espaço, ela reage a esse confinamento movimentando-se de um lado para o outro; quanto menor a região do confinamento, tanto mais rapidamente a partícula se agitará), em um comportamento que constitui o chamado efeito quântico típico (uma característica do mundo subatômico sem nenhuma analogia macroscópica).
Na física, reconhecemos a natureza dinâmica do universo quando nos voltamos para as pequenas dimensões: o físico, ao observar a natureza do universo, não se limita a procurar ler o que está escrito ali, mas busca entender o porque de ter sido escrito – e como essa escrita foi feita. A teoria quântica da gravidade seria capaz de explicar não só o que acontece dentro do interior de buracos negros, como o que ocorreu nos instantes iniciais após o Big Bang. Exatamente como um mago em uma aventura de D&D.
Tudo sobre a Incerteza
O Gato de Schrödinger é uma experiência mental inventada por Erwin Schrödinger, que procura ilustrar a incompleta teoria da mecânica quântica do sistema macroscópico ao subatômico. O gato é colocado numa caixa selada. No interior da caixa existe um dispositivo que contém um núcleo radioativo e um frasco de gás venenoso. Quando o núcleo decai, emite uma partícula que aciona o dispositivo, que parte o frasco e mata o gato. De acordo com a mecânica quântica, o núcleo é descrito como uma mistura de “núcleo decaído” e “núcleo de não decaído”. No entanto, quando a caixa é aberta o experimentador vê só um “gato morto/núcleo decaído” ou um “núcleo não decaído/gato vivo”. A questão é a de saber quando é que o sistema deixa de ser uma mistura de estados e se torna num ou noutro? O objetivo da experiência é ilustrar que a mecânica quântica é incompleta se não existirem regras que descrevam quando é que a função de onda colapsa e o gato se torna morto ou vivo em vez de uma mistura de ambos.
Ao contrário do que você pode estar pensando agora, Schrödinger não era um necromante pretendendo mostrar que existem gatos mortos-vivos; o que ele queria mostrar é que a mecânica quântica é uma teoria incompleta! Segundo a interpretação dos universos paralelos de Everett, ambos os estados persistem. Quando um observador abre a caixa, ele torna-se um tanto emaranhado com o gato, então o observador declara o correspondente ao que vê, se o gato está vivo ou morto sendo que cada estado pode não ter nenhuma interação com o outro. Podemos dizer que, se o observador vê o gato morto, em uma outra realidade um outro observador veria o gato… vivo.
Em uma aventura de RPG, ao usar a magia, o personagem realiza uma experiência muito parecida, onde os resultados das jogadas de dados é o que diz se o gato está vivo ou morto, ou seja, o mago manipula a realidade para dar origem aos efeitos que deseja observar. Esse tipo de raciocínio pode tornar muito divertido o uso da magia em uma aventura, mas principalmente, serve de ponto de partida para a criação de um sistema de mágicas que respeite as leis da física e seja adaptável a vários sistemas de regras. É o que pretendo mostrar em 15 dias.
Feliz 2006!
Leia os artigos anteriores do autor:
Física & Magia
Interlúdio
“Física no RPG ”
- Parte I – Superpoderes e o Superconhecimento
- Parte II – Supervelocidade: SuperPoder ou SuperMaldição?
“RPG e Física. Alguma relação?”
- Parte I – O que desenhar mundos imaginários em papel quadriculado tem a ver com Física?
- Parte II – Era Einstein um RPGista?
- Parte III – Deve ser brincadeira: Jogar RPG com Feynman?
- Parte IV – Bandidos e mocinhos: A entropia, Maxwell e seu demônio de estimação
- RPG e Física. Alguma relação? (Textos compilados, editorados e ilustrados)
Por Francisco de Assis Nascimento Júnior
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