Física & Magia (II)

Matrix, Vestibular e Papai Noel…

O grande problema enfrentado por qualquer profissional que tente utilizar o RPG como ferramenta em educação, qualquer que seja a disciplina abordada, é que para poder refletir sobre o RPG e aprender algo sobre o nosso mundo, é necessário que se lembre, óbvio, que se trata apenas de um jogo. Embora isso trace uma linha divisória para o professor, aparentemente complicando o processo de aprendizagem (como o aluno vai saber o que é apenas jogo e o que deve ser aprendido como pertencente à nossa realidade?), é justamente o exercício de abstrair, a prática regrada da imaginação que torna o RPG uma ferramenta poderosa a ser utilizada. A dificuldade em se transpor o RPG, de jogo para instrumento didático, ecoa na interpretação burocrática das regras. No caso da física, por exemplo: como ensinar os alunos a calcular Movimento Retilíneo Uniformemente Variado utilizando o RPG? Bem, sinto informar, mas se você quer ensinar esse tipo de física para os alunos através do Rolleplay, tudo o que vai conseguir é fazer com que os alunos criem aversão à física E ao RPG…

“O que você sabe, você não pode explicar, mas sente!”.

É, você mesmo! Você está sentado em frente a um computador, porque sabe o que é um computador; sabe que as informações que chegam através dele até você foram produzidas por seres humanos, que os impulsos elétricos necessários para que essas informações se propaguem também foram produzidos com a intervenção humana, e que o computador é obra do trabalho humano. Claro que ninguém pára para pensar “do que é feito esse computador” ou “como a informação dentro dele se reproduz através da internet”: o computador é um elemento presente em nossa realidade e o aceitamos como tal, ao passo que a “maneira como as informações se reproduzem através da internet” é hoje encarada como uma engrenagem de um relógio – você sabe que está lá e até sabe descrever aproximadamente como ela opera, mas poucas pessoas são capazes de explicar detalhadamente como ela funciona.

O que ocorre é exatamente o mesmo que com a magia em um mundo de RPG: ela opera de forma aparentemente desconhecida, embora sua presença seja reconhecida pelos personagens. Nem todos os personagens possuem afinidade com a magia, e isso não é realmente necessário para que a magia seja aceita como real naquele mundo, porque em um universo de jogo a realidade não necessita da magia para existir: ele se auto-sustenta! O que só acontece porque mesmo mencionando dragões, demônios e divindades, os elementos que existem em uma aventura de RPG dependem inteiramente de elementos que existem no mundo real, no nosso mundo, para poderem existir: o reino imaginário em que as aventuras se desenrolam só existe enquanto durarem as rolagens de dados dos jogadores, o que estimula nossa imaginação (a responsável pela criação e desenvolvimento daquele mundo) a continuar produzindo elementos que suportem a existência do universo de jogo. Em cada sistema, cenário, busca, está presente um universo de jogo que define não só a geografia, como a cultura, misticismo e religião daquele mundo. Para poder participar de algumas campanhas, dependendo do nível de sadismo (ops, digo, realismo) do mestre, é necessário um verdadeiro estudo filosófico sobre o sentido da existência (ou não) de um panteão naquele mundo. O ponto, entretanto, não é esse. O ponto é: e as leis da física, que de forma curiosa, são praticamente iguais em todos os cenários?Afinal, quando uma lei da física é quebrada em jogo, ou a magia está presente, ou o mestre é sanguinário…

A Ciência, a imaginação e a toca do coelho.

Quando o primeiro filme da série Matrix estreou nos cinemas, em 1999, era comum encontramos pessoas conversando sobre qualquer assunto com cunho filosófico (por mais superficial que fosse) em torno de um comentário do tipo “igualzinho ao filme Matrix” . Isso porque após assistir aos filmes da série, professores de filosofia podem muito bem dizer que eles oferecem apenas uma reflexão amadorística sobre o significado de realidade e ilusão. Já um rpgista tende a sair das salas de cinema com uma gama de idéias para suas próximas aventuras, onde os personagens podem muito bem enfrentar dilemas do tipo “será que sou um gambá sonhando que é um peixe sonhando que é um homem?”.

Uma análise superficial do contexto dos filmes pode muito bem dizer que o enredo apenas especula sobre a dependência humana das máquinas. De forma curiosa, após vermos os filmes nos tornamos ainda mais dependentes de máquinas, através do tsunami de produtos ligados à franquia (DVD´s, videogames, trilha sonora, sites na internet, etc). Tudo em nome da diversão.

O que chama a atenção para a série Matrix é o fato de que na medida em que os heróis despertam, se tornam capazes de contornar as limitações da realidade física que os envolvem: evoluem para um cenário capaz de lhes fornecer não só o controle sobre seus próprios corpos, mas da própria realidade que lhes circunda. É como magia, em uma primeira impressão. Após pensarmos sobre o filme, percebemos que os incríveis saltos sobre prédios ou interromper a trajetória das balas congelando-as em pleno ar, no contexto da série, não é mais mágico que transformar um líquido em sólido ou em um gás em nossa realidade, mas você já parou para pensar na dificuldade que a água (líquido) enfrenta para se tornar gelo (sólido) ou evaporar (gás)? E em como é incrível que esse processo seja reversível? O fato como esse fenômeno é capaz de ocorrer em qualquer lugar na superfície do nosso planeta, sempre com os mesmos resultados… não lembra um pouco a magia?

Vestibular para mago?

Antes de qualquer coisa, que fique bem claro que não estou dizendo para ninguém ir aprender feitiçaria para usar na hora da prova (já imaginou, você estudar o ano todo para prestar vestibular e na carteira à sua frente senta um outro candidato à mesma carreira, com um chapéu pontudo e cajado, que acende várias velas coloridas e rabisca o chão ao redor da SUA carteira, entoando cânticos?).

Em primeiro lugar, apenas chamo a atenção para o fato de existirem dois tipos de magos nas aventuras de RPG: há o mago apelão, aparentemente incapaz de realizar a mais banal das tarefas, como atravessar uma rua andando, sem ter de recorrer ao uso de alguma arte mística. É o mago estilo desenho animado da Disney, que lida com a magia de forma até infantil; e o mago estrategista, que guarda a magia para os momentos certos. É o tipo de mago que segue a linha de Gandalf, (do Senhor dos Anéis) e não sai desperdiçando magias por ai. Mas o que essa duas visões diferentes sobre o uso da magia tem a ver com física? Bem, esse é o assunto do próximo texto: por enquanto, vamos nos concentrar em traçar um paralelo entre o nosso universo e o universo de jogo baseado nas diferenças entre esses dois tipos de personagens: basicamente, podemos dizer que pertencem a tipos diferentes de aventuras ou cenários, já que em RPG existem vários mundos e vários níveis de realidade.

Bohr e Einstein.

É uma visão comum para um jogador de RPG. E não se trata totalmente de uma visão fantástica ou irreal, pois não são visões novas para os cientistas, também: até porque atualmente a física não concebe mais o Universo como composto por partes aleatórias, mas sim um todo coeso, em que as relações entre seus componentes fazem brotar o que é chamado realidade. Porém, essa relação de interdependência acaba dando um sentido mutável ao dito real: o objeto está mais próximo de um símbolo (uma noção de seu significado) do que o que ele é em si mesmo. Atualmente é muito difícil acreditar na existência objetiva da realidade, e os argumentos para isso são muito poderosos: é a dualidade onda-partícula, a Lei da Complementaridade de Niels Bohr (acredite, procurar por isso no google vai MESMO fazer de você uma pessoa mais feliz!), por exemplo. É fácil para você imaginar duas partículas subatômicas distantes (que tal uma no seu quintal e a outra no Havaí?), mas muitos estudantes enfrentam dificuldades em entender como duas partículas a essa distância (essa mesma que você imaginou) continuam a interagir de forma sincronizada. A interação à distância é outra peculiaridade da mecânica quântica.

Então, viaje com os olhos da mente até o instante em que a massa que deu origem ao Universo estava condensada em algo com dimensões menores que um grão de areia, veja a explosão que dá origem às estrelas, aos planetas, às galáxias. Agora imagine o momento em que o primeiro anfíbio surge na Terra, saindo do Oceano, e a aparentemente infindável gama de seres que descendem deste espécime: você também pode encontrar lugar para a mecânica quântica aqui, se quiser descrever as interações entre os complexos sistemas biológicos. Na verdade, os horizontes abertos pela mecânica quântica são teoricamente infinitos, não só no que tange à sua aplicação prática como a suas teorias, muitas vezes mais fantásticas que os sonhos dos antigos alquimistas – e de muitos dos ditos ocultistas também: Terras paralelas, buracos de minhoca, cordas e supercordas, viagens no tempo… Tudo é possível, em tese. De forma superficial, podemos dizer que os budistas acreditam na existência de uma espécie de nada, aonde uma mesma energia vital é dividida para os seres, encarnando e reencarnando. Os físicos acreditam no vácuo quântico, onde ondas de energia deram origem à matéria através da famosa equação e=mc2. A semelhança não é mera coincidência: lembro-me claramente da primeira vez em que apresentei meu trabalho para ser utilizado gratuitamente em uma escola, durante um conselho de professores. A oportunidade de trabalho foi negada, mas o que chamou a atenção foi uma das perguntas que o professor de matemática (principal opositor ao uso do RPG naquela escola) me fez:

– “Você acha que Fritjof Capra utilizaria o RPG para ensinar física?”.

Minha resposta?

– “Não acho que ele saiba que dá para ensinar física através do RPG, mas ainda assim, não seria melhor o senhor perguntar para ele?”.

Isso porque em seu livro O Tao da Física, o Phd Fritjof Capra apresenta um paralelo entre antigas tradições místicas orientais e as recentes descobertas da Física no século XX – um trabalho que desperta tanto admiradores, quanto opositores. A pergunta era ambígua, uma tentativa de desacreditar o uso do RPG, independentemente da resposta que fosse dada. Por isso, a resposta também ambígua.

Nos vemos em 15 dias, afinal, é natal. E Natal, independente da religião que cada um de nós professa, é uma época inegavelmente mágica… Tem a ver com solidariedade, tem a ver com emoção, tem a ver com Papai Noel e presentes. Papai Noel, aquele ente mágico que existe apenas no imaginário infantil, percorrendo todo o planeta Terra em uma única noite, distribuindo presentes a todas as crianças boazinhas.

A história do Papai Noel é, sem dúvida, a primeira aula de relatividade de todos nós (faça as contas!).

Após essa introdução filosófica, estamos prontos para analisar bem de perto a relação entre física e magia: nos vemos em 15 dias.

Um feliz natal para vocês!


Leia os artigos anteriores do autor:

Física & Magia
Interlúdio
“Física no RPG ”
“RPG e Física. Alguma relação?”
Por Francisco de Assis Nascimento Júnior

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