História Múltipla: trilhando caminhos com o RPG

O presente artigo discute as possibilidades teóricos-metodológicas do uso do RPG dentro da disciplina de História. O jogo em questão seria um instrumento pedagógico a serviço da interdisciplinaridade e do desenvolvimento de diferentes habilidades e competências. Tal instrumento, além disso, propicia ao aluno a visão do Outro e da diversidade cultural, colaborando para um ensino de História multicultural, bem como estimula a visão de uma História com diferentes possibilidades e diferentes rumos.

Palavras-chave: Diversidade cultural – cooperação – raciocínio- imaginação – RPG

“Poderia ter escolhido o sistema do narrador alheio, separado dos acontecimentos, mas de tal forma me é íntima, conhecida a história de Mariana, que só consigo transmiti-la colocando-me de dentro e narrando-a como se eu estivesse, a cada passo, acompanhando as cenas, ouvindo diretamente os diálogos e recebendo na cara as emoções da longa viagem da menina. Porque é de uma viagem que se trata e dela irei falar. “António Olinto, A Casa da Água

Uma das preocupações presentes no ensino de História é poder discutir a não-linearidade, a possibilidade de caminhos e respostas múltiplas, que são determinados Por culturas múltiplas, apresentar ao aluno uma interpretação histórica que compreende e respeite a diversidade cultural. A interpretação de um ensino de História que tenha um enfoque político pedagógico pressupõe preocupações tanto cognitivas quanto sociais. Sem ser um ensino meramente panfletário, o ensino de História pode vir a ser um mecanismo para o desenvolvimento de um olhar que respeite e valorize diferentes formas de expressão cultural.

Segundo a concepção histórico-social de que o aluno deva se perceber como sujeito da História, uma atividade interativa e hipermidiática como o rpg representa uma possibilidade de tal postura ser aplicada na prática. O jogo é basicamente uma história narrada que vai sendo modificada com a ação efetiva dos jogadores, personagens ativos dentro da aventura. Assim, o jogador não se atém a uma posição passiva de observador ele é ativo, é ele que com suas decisões ou a falta delas direciona todo o rumo da aventura.

Enquanto personagem que se relaciona com a aventura narrada, o educando percebe, no decorrer da própria atividade, a gama de possibilidades apresentadas Por diferentes momentos históricos, rompendo, portanto, uma possível, e reducionista, interpretação linear da História. Assim, a concepção de História como múltipla é imbuída de diferentes valores inerentes a diversas culturas, classes, origens e momentos históricos diferentes, fica clara no transcorrer do jogo.

A necessidade da manutenção da factibilidade e coerência da aventura exige que o aluno lide com as informações e discussões desenvolvidas em aula, bem como possa desenvolver a habilidade de pesquisa.. Fica claro ao educando que o aumento de sua bagagem de conhecimentos sobre determinado tema influencia diretamente sua performance como jogador. A busca de informações, a troca das mesmas e a mescla criada por diferentes fontes propiciam ao aluno a experiência de uma pesquisa dinâmica.

A aluna Raquel, de doze anos, se destacou como uma narradora criativa e atenciosa, muito elogiada por sua equipe. Segundo a aluna:

“No jogo de rpg, me esforcei muito, fiz pesquisas sobras línguas, latim e indígenas, tive várias idéias, em casa preparei cartas e personagens. Acho que fui uma boa narradora. O livro mini-gurps é para iniciantes, não contem todas as informações sobre rpg, mas é um bom livro. Pude aprender coisas novas com ele. Achei que mesmo sendo em preto e branco, ele dá múltiplas dicas de como ser um bom narrador. Eu gostei.”

Esse grupo, assim como outros de sexta série da escola Comunitária de Campinas, utilizou o livro Entradas e Bandeiras de Luiz Eduardo Ricon. Puderam não só utilizar o livro todo como escrever suas críticas e receber resposta, já que todas foram enviadas ao autor, que muito gentilmente respondeu aos alunos. A experiência de poder se comunicar com o autor do livro trabalhado foi muito rica e cheia de emoção para eles; oralmente colocaram afirmações como “estou me sentindo importante” ou “o cara respondeu mesmo!”, o que rendeu para os alunos a possibilidade de sugerir novos temas e/ou mudanças na estrutura do livro.

Os alunos foram rigorosos ao avaliar os colegas, como podemos observar na fala de Maria Luiza, aluna de doze anos, também da Escola Comunitária;

“O narrador, Camilo, não fez um bom trabalho nessa atividade de rpg, ele poderia ter se saído muito melhor. O primeiro erro cometido foi no começo da atividade, ele não procurou antes o que iria acontecer na história, qual era o enredo, que personagens criados por ele iriam ter na história, anda disso ele fez. Outro acontecimento foi que ele era muito lerdo, não era ágil, a história demorava muito para acontecer. Ele também deixava tudo na mão dos jogadores. Houve um momento que os jogadores do grupo se cansaram e decidiram me colocar como narradora junta (sic) para que a história andasse, mas conforme a história andava eu ia colocando personagens (grifo diferentes para “incrementar” a história, só que o Camilo “cortava “sempre muitas idéias, isso foi um aspecto ruim. (grifo meu )

A aluna identifica elementos fundamentais para que a atividade tenha efetivamente sucesso, a pesquisa anterior, a preparação dos personagens que irão interagir com os jogadores (npc) e a função definida do narrador. No decorrer do jogo. nesta equipe, houve uma competição pela liderança, claramente explicitada na fala da aluna, que culminou da divisão do papel do narrador entre Camilo e Maria Luiza.

A aluna solicitou diversas vezes minha interferência, preocupada com, segundo suas palavras “a falta de coerência do grupo”. Em um dado momento, os jogadores decidiram matar um bandeirante. O argumento dos meninos era que ele era muito velho, estava muito machucado e não conseguiriam fugir dos índios que estavam em seu encalço, carregando-o. Maria Luiza discordava, utilizando os seguintes argumentos: segundo a jovem jogadora, seria incoerente imaginar que uma bandeira iria se desfazer com tanta facilidade de um bandeirante branco e experiente,- verborragicamente e com uma veemência de quem estava realmente salvando a vida de alguém – a aluna chamava atenção para os valores da época,para o racismo e o imaginário da época, apontando a incoerência da ação.Resultado: o velho bandeirante foi salvo.

Flavio Andrade, jornalista e autor de rpg, explica o procedimento da criação da historia no rpg.:

“Esta história geralmente é criada em forma de roteiro, se aproximando muito da forma de roteiro cinematográfico. Porém, se trata de um roteiro aberto, pois o mestre cria tudo, menos o que os personagens dos jogadores irão fazer. Ele cria uma série de situações, mais ou menos encadeadas, e se prepara para muitas improvisações.

Ele começa a contar a história para os jogadores. Estes, interpretando os seus personagens, falam o que eles farão dentro da história. Então, de acordo com a reação de cada jogador, o mestre continua a contar a sua história. É um eterno pingue-pongue criativo. Nunca a história que o mestre criou se desenvolve da maneira como ele a imaginou. Se isso acontecer, significa que não foi um bom mestre, pois certamente ele terá conduzido e reprimido a criatividade e a interpretação dos jogadores.”(grifo meu)

Nos dados coletados em entrevistas percebi a imensa gama de informações e as diversas fontes utilizadas pelos jogadores e mestres, esse considerável argumento na quantidade de leitura entre jovens mestres e jogadores é identificada e discutido criteriosamente pela professora Andréa Pavão em A Aventura da Leitura e da Escrita. A autora se ateve a jogadores fora do âmbito escolar que utilizam o rpg exclusivamente para fins lúdicos. Os jogadores apresentados pela professora adquiriram e /ou desenvolveram o hábito da leitura a partir do jogo. Em várias entrevistas coletadas nos últimos meses, pude perceber que a hipótese da professora é correta. Os jogadores e mestres tem uma quantidade, diversidade e ritmo de suas leituras superiores a outros jovens de mesma idade. Não tem dificuldade em relacionar isso com o rpg, para os entrevistados, essa relação é clara. Muitos deles, entretanto, são relutantes em apontar um “estilo” literário presente entre os rpgistas, talvez com receio que se possa forma uma imagem estereotipada dos mesmos. Ainda assim, a leitura de HQ aparece muito freqüentemente entre os integrantes do jogo. A Pavão afirma que, ao observar os grupos jogando, não acompanhava todas as referências por não dominar o universo das histórias em quadrinhos para adultos, explorado pelos jovens em questão.

Uma reflexão mais sistemática sobre a relação entre o imaginário criado pelas HQs e sua relação com o RPG pode vir a ser um trabalho bastante rico e interessante, dado que o rpg ainda é um tema com muitas possibilidades de enfoques e discussões acadêmicas diferentes.

Assim, podemos observar a possibilidade que o jogo oferece para que o aluno desenvolva sua capacidade reflexiva, agindo coerentemente com os dados de sua pesquisa.

Para a resolução dessas situações problema, a equipe deverá utilizar seus conhecimentos coletivamente, unindo as diferentes características e habilidades de seus personagens e planejando uma estratégia coletiva. O trabalho coletivo e o exercício sistemático da cooperação são cruciais para o sucesso da equipe. Desta forma, os problemas, inimigos e desafios são introduzidos e conduzidos pelo narrador, que irão se relacionar virtualmente com a equipe. Os alunos não competem entre si, eles se unem para atingir uma proposta, derrotando desafios juntos.

Em depoimentos que mesclam o humor com tiradas poéticas, o jogador André “Crude” explica:

“Ah, o meu grupo de amigos antes do RPG não fazia muito senão sentar na calçada e reclamar da nova reformulação do homem-aranha, ete e tal. Depois de todo esse tempo, falar sobre nossos próprios personagens imaginários em nossos mundos imaginários como pessoas que criam, agem e interagem é muito prazeroso. De útil nos livros de jogo há pouco, o todo está nas mentes, e uma vez que se abrem as portas certas, não se pode mais fechar”

O jovem jogador percebe que o poder dentro do rpg está exatamente em desenvolver o potencial criativo do jogador. “Abrindo as portas certas”, o rpg estaria propiciando ao jogador uma experiência lúdica rara. 0 espaço da imaginação seria privilegiado pelo uso do rpg, esse espaço, paulatinamente negado aos alunos dentro do universo escolar, seria redescoberto e reutilizado pelo jogo.

Carlos Klimick argumenta:

Mas o rpg possui uma característica que o destaca dos demais. Ele tem como elemento principal aquilo que une todos os diferentes tipos de jogos : a fantasia. A fantasia como elemento de sublimação e mediador entre o indivíduo e a realidade. E no rPS Que o jogador vai vivenciar a fantasia deforma mais intensa, extrapolando os limites de um simples jogo sem, ao mesmo tempo, deixar de ser apenas um jogo.” (Klimick/2002)

O autor aponta a possibilidade da sensação, da emoção de vivenciar uma fantasia com a intensidade do rpg.

Eliane Betocchi observa a aproximação do rpg com a fantasia a com a linguagem do educando, afirma a autora:

“Cada vez mais as gerações jovens se identificam com a televisão, o cinema, o computador e os quadrinhos, enquanto que a escola vai progressivamente se tornando um espaço estranho e enfadonho, um local frequentado por pura obrigação.(…)Na adolescência , a imaginação é relegada as crianças, loucos e artistas, colocada em compartimentos estanques distintos da razão, por um conhecimento da complementaridade que existe entre ambas no processo de aprendizagem. Entretanto , em níveis saudáveis, a fantasia exista para afirmar o ser humano enquanto ser criador para mostrar de diferentes ângulos uma realidade que a lógica apresenta como uma só forma. (Betocchi, 2002) (grifo meu)


A trama se desenvolve com vários acontecimentos que se entrelaçam, em uma história interrelacionada.

Desta forma, podemos refletir sobre o rpg como uma estratégia de ensino hipermidiática, como aponta Andréa Pavão. A ilustradora e doutoranda em artes visuais Eliane Betochi explica:

“A hipermídia é, pois, uma forma combinatória e interativa de multimídia […}” (PLAZA, 2003:25). Isto quer dizer que, num hipertexto. as informações não são absorvidas de forma linear, umas apôs as outras, mas de forma simultânea e fragmentada, de modo similar ao funcionamento do cérebro humano.

Como forma de narrativa hipermidiática, o RPG se constitui de texto verbo-audiovisual (texto escrito, imagens e a narração do Mestre e representação das personagens pelos jogadores), onde a disponibilidade instantânea de possibilidades articulatórias permite a concepção não de uma obra acabada, mas de estruturas que podem ser recombinadas diferentemente por cada usuário. Estes elementos (ilustrações, textos, linguagem corporal e verbal) são “janelas” ou “links” de informação para o jogador sobre o cenário onde serão construídas suas próprias histórias, e, conseqüentemente, suas próprias imagens, textos etc. (grifo meu)


O RPG é uma experiência em que, apesar de uma mesma turma estar elaborando histórias baseadas na mesma proposta, temos diversas atividades que não se relacionam necessariamente. Os pequenos grupos, com seis ou sete alunos incluindo o narrador, desenvolvem aventuras sobre o mesmo tema – Por exemplo, Roma Antiga, Conquista da América ou Revolução Francesa – entretanto, suas narrativas são totalmente independentes entre si. Com essa atividade possibilitamos ao aluno a vivência da autonomia e da independência dentro do processo de aprendizagem. Rompemos com a concepção equivocada de que todos aprendem a mesma coisa ao mesmo tempo. Respeitamos, assim, não só o tempo do aluno, como suas peculiaridades. A possibilidade de troca das narrativas acontece, mas não é o foco central. O foco é o desenvolvimento de diferentes narrativas, cuja dinâmica e ritmo sempre é ditada pelo núcleo que a desenvolve.

A ludicidade dentro da educação tem sua importância ressaltada freqüentemente pelo educador Rubem Alves. O poder pedagógico da brincadeira é objeto de vários estudos e freqüente nas discussões entre profissionais da área. É indiscutível o poder motivador da atividade lúdica. A resposta positiva dos alunos face aos jogos variados não é recente, entretanto, ainda que os jogos tenham o poder de motivar os educandos, creio que não devemos restringir nosso olhar para esse aspecto, importante, porém reducionista. O jogo, no caso, o rpg, é um instrumento através do que podemos atingir determinados objetivos. pedagógicos pré-determinados.

Além disso, ainda que motivadores, a maioria dos jogos carrega em seu cerne a competitividade. O rpg se estabelece como um jogo fundamentalmente cooperativo. Essa estratégia cooperativa denota uma proposta político-social, de atividades que estimulem no grupo de alunos uma visão solidária, que perceba a possibilidade de uma estrutura social baseada na cooperação. Trata-se, enfim, de uma equipe que deverá atingir determinado objetivo e cruzar determinados problemas, introduzidos paulatinamente no jogo pelo narrador. Desta forma, os educandos deverão se ver face a face com diferentes situações-problema.

A resolução de situações-problema propicia ao aluno que reúna seus conhecimentos, observe a situação, levante hipóteses, argumento, planeje e opte . A possibilidade da escolha é nevrálgica, imprime no jogo uma característica importante: a demonstração da não-linearidade da História e, principalmente, o poder do indivíduo enquanto sujeito da História e o poder do coletivo. Assim, possibilitamos ao grupo de alunos uma vivência da História desatada da concepção positivista que a interpreta como linear e progressiva. Em termos conceituais, para nós, professores de História, esse ponto tem uma importância especial: mais do que meramente demonstrar e/ou “convencer” o aluno da multiplicidade de caminhos da História, o uso do rpg demonstra e faz com que o educando experimente efetivamente essa questão. Seu personagem age e sua ação tem efeito dentro dos rumos da História do grupo, assim, o indivíduo influencia a equipe. Pensar e agir pelo bem do coletivo é demonstrado no jogo e o aluno que demora a perceber é criticado pelos colegas. Marcos Tanaka afirma:

“O uso de jogos como estratégia de ensino, de acordo com Lino de Macedo e outros autores, ê extremamente eficaz para o aumento da motivação dos alunos e uma poderosa ferramenta do professor para o processo Ensino-Aprendizagem. Diversos trabalhos têm sido realizados, em todas as áreas, componentes curriculares e temas transversais, relacionando os jogos com a aquisição de conceitos e atitudes.

Mas o “jogo pelo jogo” nem sempre traz resultados positivos para o processo educativo. Determinados jogos podem promover, junto com a motivação e a aquisição de conteúdo, algumas atitudes não desejadas pelos professores, como a competitividade excessiva. Fábio Brotto, em seu livro “Jogos Cooperativos” preconiza que “Se o importante é competir, o fundamental é cooperar” e, com isso, propõe um novo paradigma para os jogos. Nesse novo enfoque, a vitória pode (e deve) ser alcançada quando um jogador ajuda o outro a vencer, para que ambos possam vencer Juntos. Nos jogos tradicionais, o enfoque ê competitivo, ou seja, para haver vitorioso, tem de haver derrotado(s). Então, a busca pela vitória leva, automaticamente, à procura pela derrota do outro”(grifo meu)(Tanaka/2003)


A
ssim, a utilização do RPG como ferramenta de ensino-aprendizagem pressupõe uma mudança de paradigmas, uma ressignificação do papel do jogo dentro da educação. Abandona-se, então, a função que limitava o jogo a um caráter motivador, ampliando seu espectro de possibilidades. Sem desmerecer o caráter motivador, fundamental para o sucesso que qualquer estratégia pedagógica, discutir os outros aspectos despertados pelos jogos, em especial, o RPG, são cruciais.

Lidar com os resultados de sua escolha, com os caminhos e atitudes pelos quais optou é um elemento importante dentro do desenvolvimento possibilitado pelo jogo, assim, o aluno deve lidar com o sucesso, mas também com o fracasso.

Tais escolhas estão intimamente ligadas aos conhecimentos do aluno sobre o momento histórico em questão e sobre a mentalidade da época. Desta forma, o jogador deverá agir, como, hipoteticamente, agiria seu personagem: imbuído da mentalidade específica de um tempo-espaço determinado. Deverá agir, então, não apenas tentando buscar a melhor opção, mas a opção mais plausível dentro da ótica de seu personagem. Uma ação factível para uma mulher na Grécia Clássica estaria inexoravelmente distante do que seria a ação de um jovem bandeirante paulista. O aluno Procura perceber o Outro, o diverso, o diferente, propiciando que se desenvolva uma interpretação social mais despida de preconceitos, pois esse jovem pretende, ainda que Por um espaço de tempo curto, não ser ele mesmo, mas ser, o Outro.

O rpg possibilita o desenvolvimento do raciocínio, isso é apontado repetidas vezes pelos jogadores e mestres habituais, em dados coletados em entrevistas verifiquei que os jogadores percebem um estímulo no desenvolvimento do raciocínio, quase sempre associado a rapidez. O jogador deve agir rápido, com o risco de deixar morrer seu próprio personagem, caso não tenha rapidez necessária.

Em dados coletados nas entrevistas, pude verificar que esse elemento aparece com freqüência.

Ao serem indagados sobre uma possível definição de um perfil dos jogadores, muitos entrevistados reagiram negativamente, apresentando um óbvio receio ao um rótulo, sabendo, entretanto, que já possuem seu estigma social. Esse estigma, diga-se de passagem, limita-se ao jogador fora do universo escolar. Dentro das escolas, como atividade pedagógica, não percebi essa leitura. André “Crude”, ao falar sobre as características de um rpgista. Afirma:

“Não vou dizer que nos tornamos pessoas especiais, nem mais inteligentes ou sociáveis, mas com certeza mais amigáveis.
Sem medo de encarar conceitos e preconceitos.

Parece até comercial de OMO. “Antes do RPG, eu só via encardido! Agora, olha só que monte de gente de preto!!!”

A maioria de nós é roqueira, mas eu ressalto sempre a imprestabilidade (sic) de se fechar em guetos sociais.


O estudante Rubens Padoveze, quando indagado sobre se os rpgistas teriam um perfil respondeu:

“Não. Porque os jogadores são seres humanos, e cada ser humano é um indivíduo único,, sendo assim impossível delimitar os jogadores de RPG em um grupo especifico.”


Diante da mesma questão, António Carlos Rego, universitário argumentou:

“Não. Os jogos são múltiplos, os sistemas são múltiplos, os estilos são múltiplos por que os jogadores teriam um só perfil?”


Sobre a construção da narrativa, como coletiva, Leonardo Felippe Lourenço da Silva, estudante de Direito conta:

“Uma característica que eu tenho é a de aceitar contribuições dos jogadores e discutir muita coisa com eles (…) Eu aprendi jogando Ars Magica que a estória é construída por todos os jogadores, e não só pelo mestre.”


Em entrevista, Silvio Compagnoni fala sobre suas fontes para a elaboração de suas histórias:

“Utilizo de tudo, cinema, Tv, hq… até fiz aventuras baseadas em músicas.

(…) A idéia é usar a música como um mantra para o jogo. E sempre baixo, quase como um plano, sem interferir na narrativa. Os jogadores mal a escutam, mas ela está presente.

Livros clássicos ajudam muito na hora de montar a estrutura de uma aventura.

Shakespeare é meu favorito bem como os clássicos gregos. Muitas aventuras minhas foram baseadas nestes livros e os jogadores mal percebem.”


Quando a ação do jogo acontece no ambiente escolar, um dos objetivos é que o aluno possa ter acentuado seu desejo e sua habilidade de pesquisa. Um dos resultados percebidos é o aumento da procura de informações sobre o tema em que se desenvolve a história é significativo. A busca de informações e a discussão coerente sobre os dados coletados são presentes dentro do jogo.

Uma das hipóteses de meu trabalho, baseado na pesquisa de Pavão e em dados coletados na aplicação do jogo em minhas aulas, é que o jogo deverá significar, a médio e longo prazo , um aumento na quantidade de leitura, de prática da escrita, de pesquisa propriamente dita. Podemos inferir, portanto, que a atividade propicia o desenvolvimento da autonomia do educando, que passa a ser, efetivamente, agente de sua própria aprendizagem. Ao tornar-se mais independente do professor, o aluno pode perceber que o deslocamento de sua aprendizagem tem o foco nele mesmo e não no professor. Alguns professores parecem ter receio exatamente desta característica: o tornar-se autônomo.

No trajeto que venho percorrendo com o rpg dentro do universo escolar, percebo o desenvolvimento de um tipo de independência e de um nível de responsabilidade bastante significativos. Ainda que muito jovens, os alunos fazem da atividade algo único. Observando a apresentação de Paulo, aluno de onze anos do Colégio Sagrado Coração de Jesus, percebemos isso. O presente texto foi elaborado e exposto em um mural em uma feira cultural da escola, o objetivo era apresentar rapidamente o rpg aos visitantes.

“Oi, eu sou o Paulo Vitor da 5″ uv. Eu sou o narrador (mestre) do rpg de história sobre Roma, Meu grupo (Gabriel, Marcello, Luiz Felipe, Felipe e eu) estamos fazendo um rpg, divertido jogo onde se aprende sobre um tema, sobre Roma.

Começa-se escolhendo um tema, os jogadores imaginam seus personagens e dão-lhes (sic) perícias, características, vantagens, defeitos e desvantagens. Enquanto o mestre ‘bola ‘a história com perigos, armadilhas, cenário, etc”.

Alguns professores optam por um tipo de narrativa em que eles mesmos exerciam função de mestres, no caso, da sala toda. Ainda que seja uma iniciativa com seus méritos, e que realmente tenha a função de estimular intelectualmente a turma, essa prática desobriga a criança ou adolescente da pratica criativa e da pesquisa, reduzindo sua participação e direcionando-a.

O narrador, ainda que tenha a função de criar a história, não tem de forma alguma, controle sobre ela.

Em entrevista escrita, Adriana Almeida, psicóloga, webdesigner, rpgista, esposa e mãe de rpgistas, argumenta:

“Também é curioso ver que raramente um jogador age como você supôs, no último grande live que mestrei, demos para um jogador um personagem vilão, e para outro, um herói e que eram irmãos Ficamos imaginando o que ambos fariam, se descobriram um os segredos do outro, essas coisas. Antes mesmo do live começar, nas interações iniciais, o que era herói se atrapalhou todo, fez uma série de acordos, e sem saber, cumpriu pelo irmão quase iodas as coisas que tínhamos deixado para o vilão fazer. O Jogador que fazia o vilão não precisou fazer nada, pode posar de bom moço o live todo, com quase nada para fazer, por que o irmão, que era bonzinho já tinha feito quase tudo!!!!


Adriana Almeida aponta os rumos inesperados que os jogadores podem tornar, ainda que o narrador tenha toda uma trama pré-estabelecida para si mesmo. Os dados imprevisíveis do RPG acabam por torná-lo ainda mais interessante, dado que os narradores e jogadores devem estar atentos e com um bom número que “cartas na manga”, para utilizar quando necessário.

Ou ainda observar a capacidade de alguns jogadores de superar as adversidades por maior que sejam. Alguns lives para efeito de estrutura precisam ter um mínimo de cartas marcadas, ou seja, tem um começo e um final aproximado, pois certos eventos fatalmente acontecerão ao fim do live. Nesse mesmo live um jogador, também vilão, ia perder no final. Não tinha jeito. Conversamos com ele para deixar isso claro antes de dar-lhe o personagem e ele aceitou. Apesar de saber que ia perder na final, ele exceto pelo evento que ele não podia evitar, conseguiu convencer na lábia mais de metade do live, e ter Inúmeros benefícios; resumindo: ele era uma espécie de religioso que queria manipular um país através de um príncipe fraco. Ao fim do live, o irmão mais velho do príncipe voltaria e assumiria o país, isso era fato dadot ele não sabia exatamente que seria isso, mas sabia que em algum ponto ele perderia no final: bom, ele perdeu mesmo o controle do país ao fim do live, mas conseguiu se tornar o equivalente a papa na ambientação e fazer aliança com quase todos os outros países da ambientação. RPG não tem quem ganhe ou perca, mas em live, existem “plots” a serem cumpridos, e isso é o mais perto que se pode chegar da correlação ganhar ou perder. No caso desse jogador em questão, podemos dizer que ele perdeu um “plot”, mas ganhou o live.

Em compensação, vários outros jogadores/personagens não conseguem pescar as pistas que demos no início do live para eles, e mesmo vantagens obvias que eles poderiam ter tirado, perdem seguindo o caminho errado durante o jogo.


A desatenção dos jogadores, ou a ausência do que os entrevistados chamaram de “raciocínio rápido”, provoca então uma perda de oportunidades e alguns fracassos:

“Em compensação, vários outros jogadores/personagens não conseguem pescar as pistas que demos no início do live para eles, e mesmo vantagens obvias que eles poderiam ter tirado, perdem seguindo o caminho errado durante o jogo.”


O LIVE ACTION pode ser entendido como uma espécie de desdobramento do rpg, uma forma onde os jogadores, agora fantasiados, transitam e agem como seus personagens. Uma das peculiaridades dessa forma de jogo é que os jogadores precisam desenvolver uma série de propostas, motes na história (ou “plots” como são chamados) concomitantemente.

Um jogo cooperativo que possibilita ao aluno desenvolver ao raciocínio, a argumentação, a criação, a oralidade, lidando com diversidade cultural e pretendendo compreendê-la. Esse é o rpg, um caminho de muitas possibilidades, uma teia de muitas moiras.

Bibliografia

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BETOCCHI, Eliane. Hipermídia. Retirado do site www.lilithstudio.com

KLIMICK, Carlos (2002). “Onde está o herói?” Artigo apresentado no I Simpósio O Outro, do Laboratório da Representação Sensível, Departamento de Artes e Design, PUC-Rio. (cópia digital: https://www.rederpg.com.br/wp/2003/05/onde-esta-o-heroi/)

PAVÃO, Andréa. A Aventura da Leitura e da Escrita entre Mestres de Roleplaying Game, Editora Devir, 2a edição, São Paulo, 2000

MORGATO , Vivien. “O uso do rpg em busca de um aluno autônomo”. In: jornal Bolando Aula de História, 2003.

RICON, Luiz Eduardo. O Descobrimento do Brasil, São Paulo. Devir.
____________________, Quilombo dos Palmares, São Paulo, Devir,
____________________, Entradas e Bandeiras, São Paulo, Devir.
____________________, Cruzadas, São Paulo, Devir.

RIOS, Rosana & GONÇALVES, Maria Sílvia. Jogos de RPG. São Paulo, Scipione, 1997. (Coleção Português em outras palavras, encarte).

TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América – a questão do Outro, São Paulo, Martins Fontes, 1999.

 

Vivien Morgato,
professora de História formada pela Unicamp,
Colégio Sagrado Coração de Jesus,
membro do núcleo de pesquisa em História em Quadrinhos da ECA-USP,
mestranda em Educação na Unicamp.

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