…O RPG e suas possíveis contribuições para a educação formal…
Considerando as necessidades de encontrar um gênero dentro da esfera dos jogos teatrais que pudesse ser sistematizado e vivenciado como processo de aprendizagem passível de associação com a atual conjuntura da educação formal escolhemos o RPG. Pois visualizamos que ele também pode servir como ponto de partida para viabilizar mudanças nesta educação formal gradualmente, de forma contínua e consciente. Analisemos agora o que uma definição e uma prática possível com o RPG.
Da construção de uma definição para RPG:
Na busca por uma conceituação para o RPG devemos, primeiramente, ressaltar a complexidade de tal empreitada. Afinal, devido à sua pluralidade caracterizada por ser limitada apenas pela imaginação daqueles que o jogam – o RPG possui uma definição extremamente oscilante. A definição de RPG varia de acordo com a visão de mundo de cada um que vem a jogá-lo ou conhecê-lo. Dentro dessa pluralidade, tentaremos seguir uma abordagem genérica, que possa se adequar a uma visão global do que é RPG, mas sem perder de foco a nossa concepção sobre o jogo, que norteará a construção desta linha geral . É válido afirmar que através da linha geral proposta – que estará em constante reavaliação durante a própria pesquisa – não estamos, de nenhuma forma, tentando restringir o RPG, com suas variadas concepções e historicidade, a uma única definição, pois além de ser uma incoerência acadêmica, esta atitude, devido à própria mutação inerente ao RPG, seria pouco efetiva.
A sigla RPG, que é o termo comumente usado no Brasil para descrever este gênero de jogo, vem do inglês Role Playing Game, cujas traduções mais adotadas são: Jogo de Interpretação de Papéis, Jogo de Representação de Papéis e Jogo de Personificação de Papéis (usa-se com freqüência, nas publicações nacionais voltadas ao jogo, o termo Personagem em detrimento a Papéis ). É importante ressaltar que dentro da conjuntura mundial, o Brasil é um dos poucos países de língua não-inglesa que usa o termo Role Playing Game para definir os Jogos de Personificação – os RPGs.
O RPG, enquanto jogo e da forma que conhecemos hoje, surgiu[1] originalmente nos Estados Unidos da América na primeira metade da década de 70, possuindo como primeira publicação um quase desconhecido título chamado CHAIN MAIL® (traduzível como Cota de Malha , que era o nome dado a uma espécie de armadura medieval), com sua primeira edição datada de 1972 e creditada a Gary Gygax e Jeff Perren, pela editora TSR. A TSR, após melhorar e modificar o sistema de regras do CHAIN MAIL® , publicou um outro jogo embasado nele, chamado DUNGEONS&DRAGONS®. O D&D, como ficou posteriormente conhecido este segundo jogo de RPG, teve sua primeira edição datada de 1974 e era fortemente influenciado pelos Wargames (Jogos de Guerra[2]) e pela literatura fantástica de J.R.R. Tolkien[3]; comparativamente, o D&D possuía uma construção e uma sistemática de jogo mais simples que os jogos atuais. Nessa sistemática os jogadores representavam personagens ambientados em um mundo[4] de Fantasia Medieval[5], e tinham, em geral, algumas missões épicas que eles deveriam sobrepujar. Mas, mesmo dentro das limitações características de um pioneiro no gênero, o D&D trazia em seu cerne os atributos únicos que o diferenciavam de todos os outros jogos – atributos esses que são sempre verificáveis e produzidos a partir da influência (mesmo que indireta) da dramatização, da narrativa oral e dos primevos jogos de fantasia, como evidencia Monte Neto:
Em 1974, surgiu nos Estados Unidos um novo jogo denominado Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões), que revolucionaria toda história dos jogos, por oferecer uma nova situação lúdica, que mesmo possuindo regras, descartava tabuleiros, cartas e peças, tendo como base a criatividade (…) (MONTE NETO apud RAFFA, 1997, p. 46)
A partir deste passo inicial, o RPG obteve um crescimento contínuo, tornando-se um sucesso entre pessoas dos mais diversos países e originando centenas de títulos. O jogo ganhou um público pequeno, mas fiel, entre jovens brasileiros, geralmente universitários que dominavam a língua inglesa; estes adeptos brasileiros do RPG, devido à escassez de títulos importados e a inexistência de títulos traduzidos, passaram a foto-copiar os poucos livros disponíveis e usá-los para fins de jogo. No fim da década de 80, importadoras de livros, aqui no Brasil, começaram a interessar-se por traduzir livros, e, no início da década de 90, o Brasil adquiriu seu primeiro título de RPG renome: o primeiro sistema genérico [6] chamado GURPS (Generic Universal Role Playing System passível de tradução como Sistema Genérico e Universal de Jogo de Representação), logo após a tradução do GURPS o quadro do RPG no Brasil se ampliou, houve o surgimento de revistas especializadas, a transformação de importadoras em editoras e o primeiro título nacional Tagmar , um RPG de Fantasia Medieval, com grande influência do Advanced Dungeons & Dragons foi publicado pela extinta editora G.S.A. Este crescimento contínuo da década de noventa culminou com a inserção de grandes empresas editoriais no mercado RPGista brasileiro (o termo destacado, que designa relação com RPG, é amplamente utilizado nas publicações nacionais), que começaram a traduzir e publicar RPGs em larga escala, esperando que a receptividade do público fosse idêntica, por exemplo, à dos Estados Unidos, onde a literatura fantástica é extremamente popular. Estas grandes editoras mencionadas passaram a acreditar que o RPG não possuía uma situação de mercado favorável a investimentos de grande porte por não ser tão vendável quanto se esperava, em comparação a outros países, além de ser instável quanto a público e mercado (diferente dos outros produtos trazidos para serem comercializados graças ao seu sucesso de público no exterior). Baseando-se nesta suposta situação comercial do RPG, estas grandes editoras se retiraram, legando os direitos autorais dos RPGs traduzidos às editoras que iniciaram o mercado RPGista brasileiro. Através de uma análise atual o que podemos depreender da situação do mercado de RPG é muito pouco; incerteza é talvez a única afirmação possível, dentro de tal análise.
Apesar de seu aspecto pouco conhecido, o RPG possui uma mecânica bastante simples e, contraditoriamente, é nessa simplicidade que consiste seu caráter complexo. O RPG é um jogo de abstrações isto é; para vivencia-lo os jogadores devem criar no campo do abstrato um universo onde representarão personagens que só existe a partir da imaginação deles e, portanto, a imaginação do jogador é usada ativamente. No RPG a interação entre os jogadores é o palco onde se desenrola seu desenvolvimento enquanto jogo; isto é, o plano de desenvolvimento do jogo é a interconexão expressa das diversas subjetividades dos jogadores. Como no repente, da literatura de cordel, onde um repentista interage com o outro e fundamenta seu canto nessa interação, no RPG a atuação como personagem depende também de uma zona de interação o espaço de jogo de onde o jogador retira os dados necessários para decidir como agirá pelo personagem. Pudemos verificar anteriormente que a fantasia, as abstrações e a imaginação são hoje pouco difundidas na nossa sociedade, o que geralmente dificulta ao indivíduo sua conexão com o jogo.
Poderíamos afirmar que os aspectos básicos da mecânica do RPG considerando aqui a linha geral adotada para a abordagem da pesquisa – são fundamentados numa interação grupal – isto é, o RPG acontece enquanto jogo no âmbito de um grupo de, no mínimo, duas pessoas. Dentro da mecânica do RPG existe uma figura de imprescindível valor: o mestre[7] (os critérios de escolha do mestre são extremamente variáveis, trazendo uma gama de fatores que tornam cada caso de escolha específico; porém, em geral, a escolha é um contrato consensual entre aqueles que iram jogar interpretando os personagens jogadores e aquele que será incumbido com a tarefa de mestrar ). O mestre será o árbitro da sessão de jogo, e o responsável por conectar as ações dos personagens jogadores[8] entre si e com o mundo de jogo[9]. Os outros jogadores irão interpretar personagens – que em geral são o foco principal da trama – e através da personificação destes, irão agir e reagir ao mundo e às situações propostas através do mestre[10]. É este, a priori e dentro das linhas gerais aqui definidas, o funcionamento do RPG: O mestre é o jogador responsável por ser o conector do e no jogo ou seja, ele é a peça principal que mantém o jogo em seu fluxo, tanto para os personagens dos jogadores como para estes. Baseados nas especificações do mestre, do cenário[11] e do sistema[12] os jogadores criam personagens; a partir destes personagens o mestre propõe aos jogadores um argumento, que recebe variadas denominações (dentre as mais comuns estão: aventura e narrativa ) e geralmente é pré-desenvolvido. Derivando desse argumento, se desenvolverá uma história conjunta, imprevisível, sendo modelada através das interações dos personagens/jogadores e do mundo/mestre e que pode ser concluída ou não, a depender do estilo do jogo dentro de nossas linhas gerais , especificaremos a natureza dos dois estilos mais comuns de jogo no critério continuidade: as aventuras que são narrativas com um começo, meio e fim definidos; e as campanhas que geralmente é uma sucessão indefinida de aventuras, com um eixo principal, e que pode vir a ter um fim ou não. Fazendo um correlato com as histórias cinematográficas: as aventuras são filmes, que são passíveis de continuação ou não; e as campanhas são séries, que mesmo tendo um fim, podem se protelar por anos a fio. A campanha mais antiga de RPG conhecida atualmente possui mais de duas décadas de existência.
Mesmo não estando sob o foco do presente estudo, é importante comentar sobre a existência de outras modalidades de RPG. Os Live Action Ação ao Vivo, são uma modalidade nova no âmbito RPGístico, onde os jogadores não apenas agem como seus personagens anunciando suas atitudes e ações oralmente, mas assumem vestimentas e passam a agir como eles, transportando a essência do RPG para o que poderíamos chamar de uma ação teatral improvisada. A Grande Rede Mundial de Computadores, talvez por sua contemporaneidade, tem auxiliado o RPG, e até mesmo sido parceira do jogo de forma geral; na Rede surgiram os jogos via correio eletrônico (PBEM Play by e-mail), em que os jogadores interagem usando mensagens eletrônicas postadas num fórum de debates, e passam a interagir através dessas mensagens. Outra forma de representação, surgida de forma espontânea, mas que tem ganhado adeptos entre os usuários da Grande Rede é um estilo de RPG mais aberto, sem regras e sem a figura do mestre, em que os jogadores, num canal de bate-papo (também conhecidos como chat) passam a dialogar assumindo, para suas ações e pensamentos, a interpretação de um personagem. Talvez, numa análise ampla, poderíamos afirmar que muito do que se encontra na maioria dos canais de bate-papo atualmente, sendo eles dirigidos a RPG ou não, tem uma semelhança com este estilo de RPG, já que muitos dos usuários da rede assumem perspectivas não-pessoais para dialogar nestes canais. Além das variantes citadas; muitos jogos guardam similaridades com o RPG, talvez por possuírem semelhanças quanto a aspectos fundamentais de sua constituição, como por exemplo, o tema fantástico aliado a uma maleabilidade de jogo (que é o caso de alguns Card Games e Jogos Eletrônicos) e a semelhança enquanto história interativa (como é o caso dos livros-jogo, que seguem uma ordem randômica de construção da narrativa). Mas, mesmo com essas similitudes, tais jogos não são considerados RPG, por não apresentarem o caráter Role Playing , que transforma em interpretação, a interação. A análise da avaliação destes jogos enquanto RPG ou não e do que constitui um Role Playing legítimo não receberá destaque por não condizer com o tema do presente estudo, mas, esperando-se uma abrangência no estudo acadêmico do RPG, tal análise será necessária.
Por fim, basta-nos salientar que o RPG, ou melhor, seu espírito , precede a sua forma atual. Por ser mais antigo (não apenas em seus atributos ou características que o formam, mas também em sua essência que consiste na própria natureza do jogo simbólico, no faz-de-conta e no fingir ) que a concepção contemporânea que adotou, gerada a partir de livros e de uma indústria de produção em massa, que pode até mesmo coisificar e imbuir de valores culturais um estado inicialmente pessoal, como o fantasiar, o RPG pode trazer tendências ideológicas ou mensagens alegóricas, o que é plenamente desaconselhável. Por tanto, antes de haver uma abertura muito grande ao que irá se jogar é sempre válido analisar em grupo as concepções que serão adotadas no jogo.
Do RPG enquanto ferramenta/meio/agente de educação:
Na busca de um sistema metodológico que permitisse e privilegiasse a valorização do lúdico e do prazer dentro da educação formal, reconhecendo a importância do jogo enquanto espaço de aprendizagem e construção do cognitivo, sem necessariamente excluir o caráter informativo de suas propriedades, consideramos apropriado o RPG – que possui uma diversidade de elementos estimulantes à existência do lúdico e à sublimação da fantasia. Confirmando a relevância do RPG e sua característica mais marcante a fantasia (que sempre se faz presente no jogo, ao menos em seu aspecto teatral) – foi deveras importante a contribuição de Koudela ao afirmar: (&) como conjunto organizado de ações e transmissão de mensagens, o teatro poderá, per se, ministrar educação e ser agente e meio de educação (&) (KOUDELA , 1990, p. 27). Ou seja, se o RPG contém, de certa forma, teatro podemos considerar que ele é também um meio/agente, per se, de educação.
Se, na procura pela obtenção do desenvolvimento do prazer na educação formal, nos percebemos a arte e o lúdico como elementos fundamentais, nada seria mais plausível que o uso de um jogo que ampliasse as diversas linguagens artísticas, de forma contínua e com uma desenvoltura natural – isto é, antes de ser transformado em um forçoso servo dos anseios pedagógicos de transmissão de dados. Dentro das especificações escolhidas como critério para uma atividade de potencial lúdico que correspondesse às expectativas que motivaram essa pesquisa, o único gênero de jogo que contemplou plenamente esta e outras perspectivas foi o RPG. É necessário salientar que, devido a seu caráter de contínua construção, aliado à cooperação inerente a prática do jogo e o reconhecimento de sua maleabilidade à simulação de qualquer contexto necessário à sublimação do prazer e à formação-informação do individuo o RPG caracteriza-se como um agente/meio de educação.
Antes de se emitir quaisquer juízos sobre a prática do RPG como metodologia de ensino/aprendizagem deve-se salientar que, para se tornar efetivo, o RPG deve ser vivenciado de forma espontânea, qualquer exigência ou coerção para a prática do RPG, como em qualquer atividade lúdica, torna-o impotente. Corroborando esta análise, poder-se-ia valer da assertiva de Huizinga quando afirma que (&) o jogo é uma atividade voluntária. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo ser uma imitação forçada (HUIZINGA, 1980, p. 10). Esta coerção pode surgir a partir de uma validação formal da prática do RPG, atribuindo-lhe valores quantitativos ou outra forma de compensação utilitarista que a escola formal venha a usar, o que arruinaria a espontaneidade necessária ao jogo. Portanto, para que tais eventuais problemas não aconteçam, a prática do RPG deveria ser efetuada ou em horários/de maneira que os alunos possam optar por não participar da sessão de jogo ou em paralelo com outras atividades lúdicas disponíveis, que permitirão aos participantes escolherem a qual presenciar. Outro fator de elevada importância é a formação dos grupos de jogo durante a prática. A liberdade também deve ser respeitada nesse momento, e os grupos devem ser formados de forma livre, e até mesmo a utilização intencional do momento lúdico para a restauração de relações interpessoais abaladas entre os participantes deve ser feita com parcimônia. A individualidade é um fator principal no desenvolvimento de um jogo cooperativo.
Além das potencialidades como propiciador de prazer (partindo do pressuposto que a espontaneidade é um dos eixos que norteiam a sua prática), o RPG também pode servir como canal para uma nova análise dos valores da educação formal, afinal através dele, o lúdico e o aprendizado, o brincar e o saber, tornam-se tão imbricados que é pouco possível, ou ao menos antinatural, a continuidade dessa dicotomização forçada feita pela escola entre o ato de aprender e o ato de se divertir. Este imbricamento originado a partir do RPG se dá, principalmente, porque o contato com o jogo pressupõe uma continuidade dele, mas não necessariamente enquanto jogo, fora da sessão de RPG. Essa continuidade acontece naturalmente, afinal, a fantasia não deixa de existir no momento em que o jogo acaba, e o fantasiar serve de motivador para a busca de conhecimento que venha preencher lacunas na verossimilhança da teia criada pela conexão entre as fantasias de todos os jogadores, isto é, mesmo fora do espaço reservado ao jogo, os jogadores continuam a tê-lo como motivação para produção de juízos, entretanto, são as fantasias pessoais deles que se sublimam durante o jogar.
E é na análise deste fantasiar propiciado pelo RPG que reconhecemos mais uma de suas potencialidades. A fantasia, como vimos anteriormente, é o meio natural do homem de interconectar seus mundos interno e externo. Ela a fantasia aliada ao jogo transporta o ato de conhecer-se e conhecer o mundo para uma esfera do prazer, e talvez esta seja a tendência natural do homem ao se deparar com o descobrir, tendência essa que é bloqueada pelos medos incutidos de forma artificial quando se é criança, transformando o desconhecido em algo amedrontador e o ato de conhecer um evento vergonhoso ou que exige esforço. E, na revitalização deste prazer de conhecer, o RPG tem contribuições importantes a fazer, numa sociedade cada vez menos fantástica, onde, por exemplo, ter uma imaginação muito fértil é um defeito e ser sonhador e ter ideais utópicos é perder tempo, encontrar um espaço de valorização destas características e encontrar um grupo em que a interação entre essas fantasias ocorra de forma espontânea e amigável é imprescindível.
Outro fator em que o RPG poderia ajudar é na reavaliação dos atuais valores individualistas. A sociedade do ter onde o que se tem é mais importante do que o que se é torna os indivíduos cada vez mais avessos uns aos outros, criando um clima de competitividade entre todos. Na prática do RPG, mesmo quando os personagens dos jogadores são rivais, existe uma cooperação indispensável entre os jogadores. Cooperação essa, aliada à intimidade das trocas de fantasias pessoais, que requerem (ou criam) um nível de intimidade entre os jogadores. Enfim, através do jogo de RPG é fácil depreender que mesmo que haja um melhor entre todos, ele não poderá ser, sozinho, melhor que todos juntos. É comum encontrar entre praticantes do jogo manifestações do pensamento que 1 somado a 1 é sempre maior que dois, talvez por reconhecerem a individualidade sempre como um ganho para a totalidade.
Como já foi mencionado anteriormente, o RPG tem uma capacidade de atração e difusão de conhecimento muito intensa. Podemos conjeturar que esta capacidade se deva à leitura que acompanha o RPG o jogo usa em geral livros como veículo de ambientações e sistemas mas isso seria reduzir essa curiosa capacidade apenas a compilação de informações, sendo que, o jogo traz uma necessidade de questionamento similar à filosofia. Se analisarmos para uma análise do RPG fora do seu aspecto comercial, onde se pode encontrar produtos acabados e fantasias prontas, perceberemos facilmente que a abstração necessária para a construção e manutenção da história de vidas (no caso dos personagens jogadores ou não) e mundos exige um mínimo de elucubração dedutiva, isto é, compreensão ou criação de novas formas de pensar, de novas visões de mundo.
Além das capacidades inerentes ao RPG, per se, pode-se acrescentar que, respeitando a própria característica espontânea do jogo, é possível direcioná-lo , tanto positivo quanto negativamente. Mas esse direcionamento só se dá através de um chamado, uma convocação, que pode ser aceita ou não pelos jogadores, e que depois de aceita pode acarretar um desfecho completamente diferente daquele proposto inicialmente. Em geral, esse chamado origina-se do mestre e é neste ponto que se pode acrescentar uma informação especifica ao jogo. Isto é, suponhamos que é necessário a um grupo de alunos entender, por exemplo: o que foi, como se deu e que causas e conseqüências estiveram ligadas à Noite das Garrafadas. Sem dúvida, a melhor forma de compreender tal acontecimento seria vivenciá-lo e depois refletir sobre ele, mas considerando que esta opção é impossível e um tanto quanto perigosa (afinal algum dos participantes poderia ser machucado no processo) então a segunda melhor opção seria simular a Noite, e tentar analisá-la dentro do prisma de alguém que supostamente a presenciou; um manifestante, por exemplo.
Mas como fazer essa simulação? Mesmo com todo o avanço da tecnologia atual, nenhuma máquina consegue imbuir uma pessoa com mais sensações e emoções que um outro ser humano, e a imaginação ainda é, quando praticada, a forma de contemplação virtual mais acessível e barata que existe, portanto nada mais compreensível que através de um estudo aprofundado do tema os participantes passem a imaginar a Noite das Garrafadas. No entanto esse participar pode ocorrer sem negarmos-nos a liberdade de alterá-la à vontade; afinal, que meio de aprendizagem é mais válido que aquele que nos permite vivenciar um fato e alterá-lo segundo nossas concepções, à medida que somos alterados por ele? Neste sentido, nesta capacidade de simulação programada/imprevisível, o RPG demonstra ser uma possibilidade quase natural de simulação.
Os momentos de prática dessa simulação dentro da escola poderiam ocorrer das mais variadas formas. Consideraremos agora algumas estratégias para a uma possível prática com os RPG.
O RPG é um gênero de jogo recente, qualquer prática que venha envolve-lo deve partir de uma discussão entre os participantes dentro da escola os alunos e professores sobre o que é e como funciona os Role Playing Games. Considerando esse primeiro momento de debate e reconhecimento, passaríamos então a formar os grupos de jogo: grupos de até 10 participantes com um dele encarregados de mestrar o jogo. Os grupos devem ser formados de forma espontânea, por afinidades de interesses. Cada grupo funcionaria como um núcleo – separado, mas ainda assim interconectado aos outros núcleos.
É importante ressaltar que a prática do RPG demanda tempo, em geral mais que duas horas, por isso se mostra necessário que esses momentos ocorram em horários diferentes que os das aulas dos alunos. A prática proposta pressupõe um encontro semanal com encontros de duas a sete horas de duração. Novamente é importante ressaltar que critérios como notas e presença obrigatória são altamente incongruentes com a prática lúdica do RPG. Dentro desse período de jogo é importante que os jogadores tenham total liberdade para ausentar-se, por exemplo, desde que esta atitude não seja um entrave ao andamento do jogo.
Dentro da prática do RPG na escola cremos ser importante avaliar o papel do mestre. O ato de tecer histórias e conectar narrativas é um trabalho que requer algum esforço e não é do intento desse estudo dissertar sobre isso. Porém é importante salienta que esse papel de mestre de jogo não precisa ser exercido pelo professor. Diante de uma proposta de narrativa que contemple os anseios dos conteúdos a serem conhecidos e das atitudes a serem trabalhadas, qualquer integrante do processo que estiver disposto a adotar o papel de mestre e dedicar-se a isso deve ser incentivado. Para tanto, é importante que o projeto de jogo seja construído previamente, com a participação dos que irão mestrar e dos professores; definindo assim quais os temas e percursos que a narrativa irá tomar.
Um outro ponto de referência que deve ser debatido é a capacidade do RPG de trabalhar através de temas, em detrimento à postura disciplinar da escola. Na sua prática o RPG pode transcender as limitações impostas pela dicotomia gerada pelo conhecimento disciplinar e trabalhar com um tema nos seus variados aspectos. Por Exemplo: Diante de um jogo em que a proposta temática é Preservar a água enquanto direito humano , o jogo seria ambientado no planeta Terra, num futuro próximo (ano de 2020 d.C., por exemplo). Os personagens jogadores seriam desde funcionários de corporações multinacionais que tentam adquirir a posse da água e suas fontes naturais como recurso até ecologista engajados na defesa dessas fontes, passando por cientistas tentando criar inventos que possam purificar fontes de água contaminadas e membros representativos das populações nativas (que correm o risco de serem transpostas de suas moradias se as corporações multinacionais comprarem as terras onde eles moram). Dentro desta proposta temática podemos perceber que em primeiro plano poderíamos estudar as disciplinas: química, biologia, geografia.
Após uma prática pré-acordada do RPG, recomendamos uma avaliação dos momentos de jogo. Os núcleos com propostas temáticas similares reunir-se-iam em um único grupo e passariam a trocar as experiências da vivência do/no jogo. Estes encontros pós-jogos são importantes para avaliar o quão gratificante é o processo de jogo, assim como para delinear futuras propostas e métodos de jogo. O RPG é uma pratica constante, que culmina em um momento de jogo, mas que se projeta para além destes momentos, gerando como tudo o mais – repercussões nas nossas idiossincrasias e metas.
Reconhecemos que as práticas lúdicas e vivências plenas podem surgir das mais variadas fontes. E o RPG é, dentro da nossa proposta, uma fonte onde a inter-relação e a ludicidade podem ser recriadas e ressignificadas; considerando os aspectos subjetivos dos indivíduos, seus fazeres e saberes e, em certa instância, promovendo a possibilidade de novos olhares sobre o mundo.
…Conclusões…
Poder-se-ia afirmar que a prática metodológica com o RPG não é plenamente satisfatória. Isto é uma inverdade no que toca a capacidade do RPG, mas pode ser real quanto à adaptação das pessoas em relação ao jogo. Afinal, sendo um jogo de intensa interação, a existência de algum jogador pouco integrado ao grupo ou ao jogo pode comprometer a diversão de todos. Ou, pior, havendo uma instabilidade da parte do jogador incumbido da função de mestre não há como existir aproveitamento dentro do jogo. Como ressalta Huizinga (1980), não se pode atribuir valores morais/culturais ao jogo, já que ele está numa esfera externa à cultura. Assim sendo, devemos atribuir vícios e virtudes não aos jogos, mas, sim, a maneira que o ser humano interage com e através deles.
É deveras importante observar as tentativas de adaptação dos valores vivenciados no lazer com a educação. Não se deve confundir a postura, positiva, de orientação e motivação com um simples deixar fazer. O professor, em relação a esta conexão lazer-escola, não pode deixar de ser participante do processo e se tornar espectador. Referindo-se à aprendizagem, Ildeu Moreira Coelho enfatiza que (…) esta não se dá espontaneamente, como um lazer, mas exige disciplina, esforço, persistência; numa palavra, supõe trabalho (COELHO apud MARCELLINO, 1990, p. 98).
Não que esse trabalho tenha que necessariamente negar o prazer, mas é sempre válido ressaltar que mesmo a prática do lazer e da obtenção do prazer pode acarretar trabalho, seja no âmbito da aprendizagem ou não, e que talvez a grande chave do reencontro do prazer na educação formal brasileira seja transformar esse trabalho em lazer. A disciplina, dentro da nossa concepção, é antes de tudo a capacidade do individuo de tornar discípulo de si mesmo; isto é, toda disciplina é, antes de tudo, autodisciplina.
Reconhecer então, que dentro do espaço da educação formal, é possível redescobrir/recriar outros espaços de aprendizagem, onde se processa e vivencia-se educação é uma postura que deve ser inerente de todo educador, como nos ressalta Luckesi:
(…) muitas são as possibilidades do nosso desenvolvimento de nossos estados de consciência, o que importa é que elas sejam inteiras e plenas. (…) A educação é um lugar muito especial, através da qual nós nos autoorganizamos, em nossas interações com as múltiplas dimensões da vida, tendo em vista manifestar o nosso Ser. Afinal, educação significa conduzir (ducere) de dentro pra fora , e por isso, manifestar o nosso Ser.” (LUCKESI, 1998, p. 25)
Também é importante observar que, para que o jogo tenha sua participação completa na educação formal é necessário que o educador vá além das teorias, buscando resgatar a sua vivência lúdica, levando em consideração a pessoa que ele é, sua história de vida, seu contexto sócio-cultural e a sua capacidade de criação artística. Partir de si, enquanto pessoa, e interconectar-se com o outro alunos, professores, mundo, etc. e permitir-se mudar enquanto muda. Pois como apropriadamente nos demonstra o mestre Paulo Freire, quem forma se forma e reforma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado”. (FREIRE, 1996, p. 24-25)
Por fim, este estudo não objetivou gerar mudanças em larga escala na educação, antes e pelo contrário, ele é a manifestação pessoal de um desejo de mudança, tornando-se real gradualmente. Através dele propusemos uma pequena alteração nas práticas escolares, que visa promover alterações nas vivências oriundas dessa prática para, talvez, gerar mudanças maiores. Para tanto se faz necessário que novos estudos/novas práticas sejam feitas visando a promoção do lúdico, sendo o RPG uma interessante possibilidade de reestruturar as atuais práticas de ensino e suas relações com o lúdico. Almejamos, por fim, que com os outros estudos pioneiros sobre este tema RPG este estudo sirva como ponte para futuras incursões nesta fantástica possibilidade de ressignificar e vivenciar o mundo.
Referências Bibliográficas:
BETTELHEIM, Bruno. Uma vida para o seu filho pais bons o bastante. Rio de Janeiro: Campus, 1998.
CHATEAU, Jean. O jogo e a criança. São Paulo: Summus, 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.São Paulo: Perspectiva, vol. 4, 1980.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. São Paulo: Perspectiva, 1990.
LÉVY, Pierre. A ideografia dinâmica: rumo a uma imaginação artificial?. São Paulo: Loyola, 1998.
LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo Epu, 1986.
LUCKESI, Cipriano. Desenvolvimento dos estados de consciência e Ludicidade (artigo). Salvador: EDUFBa, 1998.
________________( ORG.). Ludopedagogia- Ensaios I: Educação e Ludicidade. Salvador: UFBA, 2000.
MARCELLINO, Nelson Carvalho. Pedagogia da Animação. Campinas – SP: Papirus, 1990.
PAVÃO, Andréa. A Aventura da Leitura e da Escrita entre Mestre de Roleplaying Game (RPG). São Paulo: Devir, 2000.
PEARCE, Joseph Chilton. A criança mágica: a redescoberta do plano da natureza para nossas crianças. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989.
PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criação: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
RAFFA, Luciane Orlando. Avaliação do ROLE PLAYING GAME como Programa de Lazer. Campinas: PUCCAMP, 1997.
TOLKIEN, John Ronald Reuel. O Senhor dos Anéis. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
VOLPATO, Gildo. O Jogo e o Brinquedo como Elementos da Cultura. In Rev. Ciência Humanas, Criciúma, v. 4, n.2, p. 73-82, jul. /dez. 1998.
Notas
[1] Para efeitos de uma análise mais aprofundada, poderíamos afirmar que o RPG, ou ao menos seu espírito , sempre existiu. Afirmamos isso a partir do momento que reconhecemos os jogos de fantasia como pré-requisito à infância, os jogos teatrais e a representação de papéis como algo inerente ao convívio social e a arte narrativa e as histórias transmitidas oralmente como preceitos da transmissão de conhecimento dentro de uma civilização ágrafa.(voltar)
[2] Jogos antigos em que o sistema consiste em cada jogador controlar um exército que deve usar para alcançar seus objetivos.(voltar)
[3] Escritor Inglês do século passado que é considerado o pai da Alta Fantasia.(voltar)
[4] O termo mundo aqui é usado no sentido RPGístico, ou seja, uma ambientação criada com o intuito de ser o cenário onde se desenrolará a trama. Também chamado de universo, esse mundo não é, em última instância, apenas uma descrição físico-espacial do cenário. (voltar)
[5] Fantasia Medieval é o termo comumente usado na literatura para descrever cenários que guardam semelhança com a Idade Média e que possuem elementos fantásticos (por ex., dragões existem), também chamados de Espada & Magia , é um conceito muito influenciado pela alta-fantasia de Tolkien (1994).(voltar)
[6] Um sistema é o nome dado a um conjunto de regras de RPG, que serve como norteador para o desenrolar do jogo em seu aspecto mais mecânico, geralmente um sistema é associado a uma ambientação ou estilo de jogo (Fantasia Medieval ou Futurista , por exemplo). Um sistema Genérico é um sistema de regras criado com o intuito de servir a qualquer mundo/ambientação/cenário.(voltar)
[7] Mestre é o termo mais comumente usado para designar o jogador responsável pelo andamento em conjunto do jogo, é o eixo de ligação que equilibra as relações dos jogadores, seus personagens e o mundo de jogo. O termo vem do D&D, em que o jogador que possuía este encargo era denominado Dungeon Master. Atualmente várias denominações representam este jogador, como por ex. mestre do jogo, narrador e anfitrião.(voltar)
[8] PJs, ou personagens jogadores é o termo para designar os personagens que são controlados pelos jogadores,ao passo que os PNJs personagens não jogadores- são os que estão sob o controle do mestre, comumente usam-se os termos em inglês: PC Player Character; NPC – No Player Character .(voltar)
[9] O mundo específico onde o jogo está ocorrendo.(voltar)
[10] Usa-se aqui através e, não, pelo , por considerar-se que a própria história cria uma existência independente, guiada mais pelo movimento contínuo das inter-relações no jogo do que pela simples escolha de um dos jogadores ou do mestre.(voltar)
[11] Ambientação, lugar imaginário onde ocorre o jogo.Ver também mundo nota 2.(voltar)
[12] Ver sistema genérico nota 4. (voltar)
Gabriel Swahili
Pedagogo e fundador da lista S.E.R.
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